(Versión en español en los comentarios)
“Em tudo o que suscita em nós o sentimento puro e autêntico do belo, existe realmente a presença de Deus. Há uma espécie de encarnação de Deus no mundo, de que a beleza é testemunho. O belo é a prova experimental de que a encarnação é possível. Portanto, toda a arte de primeira categoria é, por essência, religiosa. (Algo que hoje em dia desconhecemos.)”
Simone Weil, em A Gravidade e a Graça
Queridas Amigas, queridos Amigos,
Há dias, nas minhas escritas e estudos, escrevi: as palavras têm “corpo”. Tinham em mente a certeza de que quando se escreve de “coração na mão”, as palavras tornam-se verdadeiramente densas, como que um espelho que reflecte não só o sentir, mas também toda a pessoa que as escreve. Tenho para mim que nesses momentos não pode haver mentira, que a verdade mais pura do sentir aflora e torna-se presente. Outra forma ou outro lado da encarnação, diria. Acrescento que quando me refiro ao coração, faço-o no sentido hebraico, em que é considerado como centro não só das emoções, dos afectos, como também do discernimento, do pensar, do encontro com o sentido e decisões da vida. Por isso, escrever de “coração na mão” é escrever com todo o ser.
Em jeito de pequeno ritual, acendo a vela que me acompanha nas orações dos últimos tempos e dou “corpo” a esta carta de Natal de 2012.
“Onde estás?” (Gn 3,9) Esta pergunta soou-me forte há dias. No contexto em que é formulada, Deus procura Adão, que se escondeu depois de comer o fruto proibido. No entanto, mais do que me sentir procurado por Deus, percebi que a pergunta me levava a ir ao presente, a uma escuta do “aqui e agora”. “Que fazes? Que queres? Que sonhas?”, ramificariam a partir desse estar. Não se trata de um presente que anula o passado e o sentido das coisas. Tem os alicerces na História (seja ela qual for) e, precisamente por esse passado, é vivido de uma forma diferente. Mesmo que ao jeito de ritual familiar se cumpram as tradições, estas não serão iguais. Olho para este ano que passou e é impressionante as mudanças que houve, os acontecimentos que me levaram a uma diferença no meu olhar da realidade, alterando as respostas quanto ao meu estar, fazer, querer e sonhar.
Ofereceram-me um presépio. As figuras não tinham rosto. Gosto muito de presépios assim concebidos. Dá-me a possibilidade de rezar e de alguma forma ser eu a pôr o rosto: meu ou de alguém. Uma das grandezas da Bíblia é permitir entrar nela com a própria vida e sentimentos. Este ano gritei dolorosamente como Job, blasfemei como Moisés, voltei a construir ídolos como o povo hebreu, senti a minha fé ser desafiada como Abrãao, passei por uma conversão como S. Paulo. Se me centrar nas figuras do presépio: encontrei-me com incógnitas como Maria, junto com a consolidação do sim à minha vocação em servir; foram algumas vezes que fiquei “sem chão” perante os desafios pessoais, sobretudo aqueles que me levavam ir ainda mais fundo de mim e confiar... confiar... e confiar, tal como o grande José; e aos poucos deixar-me entrar no “sentir” do Menino. Este “sentir” de quem não conhece nada, nem ninguém, quando nasce, quando descobre outra realidade da Vida, tendo de ser ensinado e aos poucos crescer em todas as suas dimensões como humano.
Uma grandeza (ou pequenez) de Deus é este voltar a nascer. Não porque necessite, mas para que cada ser humano possa fazê-lo também, na simplicidade dos acontecimentos da sua vida. Pode ser fácil ou muito duro, difícil até. Nós crentes, por vezes, acabamos por dizer coisas “bonitinhas”, como se a vida fosse torneada de “luzinhas e fitinhas natalícias” ou, então, carregarmos a força da crise e dos que estão a sofrer muito. Sem dúvida que temos de lutar pela justiça, no entanto, também temos de respeitar e/ou ajudar as pessoas a encontrar o seu caminho pessoal de relação com Deus, que pode não ter nada que ver com a nossa visão das coisas. Dar corpo às palavras também é passar a uma escuta da realidade, percebendo que o “nascer de Deus” pode dar-se onde menos se espera. O Salvador nasceu frágil, numa gruta, e não caiu dos céus, como um deus guerreiro.
Onde estou? Estou a ver um presépio sem rosto, onde na sua beleza deixo que a presença de Deus se manifeste, de modo que aí ponha os vossos rostos, com todos os sentimentos que possam estar a passar: a alegria do reencontro, ou a tristeza da separação, ou a incompreensão por tanto mal na realidade, ou o sofrimento pelo desemprego, ou o afastamento da Igreja (mais que de Deus) por todos os motivos e mais alguns, ou a força ganha por um desafio ultrapassado, ou o silêncio da solidão, ou o silêncio de quem contempla agradecido(a) tanto bem que recebeu (nos acontecimentos consolados ou dolorosos), ou a angústia do “sem chão” em relação ao futuro, ou a certeza de que apesar de tudo, mas tudo mesmo, é amado ou amada.
Queridas Amigas, queridos Amigos,
o meu desejo para estes dias de Natal é que tomem consciência da beleza que cada um de nós é, que todas e todos somos “arte de primeira categoria”. Se isso acontece, o belo falará mais forte e a forma como viveremos o ano de 2013 será diferente, permitindo que as encruzilhadas que passamos sejam oportunidades com esperança e humanidade.
No silencioso, misterioso e belo acontecimento da noite de 24, rezarei por cada um(a) de vocês ao Menino Jesus: pelos vossos sonhos, desejos e necessidades. Neste novo ano que se aproxima, aconteça o que acontecer, para cada uma e cada um peço esperança, serenidade e oportunidades de encontro com o sentido mais fundo do Natal: a Vida!
Um Abraço muito apertado e até breve!
Paulo Duarte,sj