[Breve oração ao adormecer]
Agradeço-Te
sermos corpo e a força de o ser
com e para além de cores
Peço-Te
que se vejam pessoas
simplesmente pessoas
[Breve oração ao adormecer]
Agradeço-Te
sermos corpo e a força de o ser
com e para além de cores
Peço-Te
que se vejam pessoas
simplesmente pessoas
José Novais
[Secção pensamentos soltos sobre acolher] “Passageiros à porta”, dizia a ou o Chefe de Cabine para nos prepararmos para o acolhimento. Conforme a posição no avião, lá nos colocávamos a acolher os passageiros. “Boa tarde, bem-vindo a bordo”; “Welcome a board”. Isto, entre outras tantas coisas, ficou-me dos tempos aéreos. Nos casamentos gosto muito de acolher os noivos à porta da Igreja. Mas, antes, também os convidados. Ali estou a recebê-los, a grande parte das vezes sem saber nada das suas histórias de vida. Vejo olhares felizes, pessoas que não me respondem, outras que se assustam. Ali, a todas acolho. Aquelas portas de Igreja são simbolicamente de passagem a algo diferente.
Acolher algo ou alguém significa dar-lhe lugar. Pode não ser o da concordância, mas, enquanto pessoa, para além de qualquer rótulo, são-lhe dados o espaço e o tempo para se renovar. Jesus acolhe o toque daquela mulher com fluxo de sangue e renova-lhe o lugar da existência, depois de ela ter-lhe contado toda a verdade. É exigente acolher a verdade. Antes de mais, a verdade de nós próprios, sem véus, do que é, do que sentimos na limpidez da objectividade. Pode ser muito doloroso e é preciso respeitar os tempos, sem heroísmos para desbravar a verdade. No entanto, fundamental, se queremos evoluir humana e espiritualmente. Aos poucos, a liberdade vai surgindo, tanto do nosso ser e sentir, como diante do outro. Dá-se passagem.
Encontro muitas pessoas marcadas por faltas de acolhimento. Eu próprio, tristemente, já contribuí para essas faltas. Nas não-respostas, como que a ignorar, percebo que podem vir ao sentir as memórias disso mesmo. Estar à porta, a dar as boas-vindas à casa de Deus, à celebração, à vida, é, como padre, dizer-lhes que Ele acolhe. Isso é que interessa. Deus quer que vivamos o nosso lugar de forma plena. Depois, com a liberdade que nos é dada, cada pessoa fará o seu caminho de aprofundar o acolhimento, a si mesma e ao próximo, atravessando e chegando à vida nova.
[Secção coisas de nada] Os ventos de final de tarde coreografam as folhas secas de tília pelo chão. E ele ali estava, quase perfeito. Pensei: o amor é um lugar de espera. Acomoda-se a observar os movimentos de toque e a escutar conversas de alma, mais subtis ou profundos. Diverte-se em sorriso sorrateiro com os fogos de artifício das paixões que interrompem os passos quotidianos, aflorando pelo corpo as hormonas que revitalizam a vida. Ainda assim, nessa espera, sabe que pode perder. Todas as perguntas fazem sentido, sobretudo quando já passou por muito. Sendo lugar de espera, sabe que os ventos agitam as árvores. As que têm raízes fortes fortalecem a amizade entre a terra e o céu. E as pequenas folhas vão formando desenhos no caminho.
Miguel Pires
[Breve oração ao entardecer]
Agradeço-Te
as sombras inesperadas
envoltas de perguntas a abrir
raízes clarividentes de corpo
Peço-Te
a beleza do foco
e fogo em Ti
“Expansão da luz (centrípeta e centrífuga)” de Gino Severini, no Museu Thyssen-Bornemisza - Madrid
[Secção pensamentos soltos sobre a existência] Têm-me assolado perguntas sobre isto de existir. Do significado da nossa presença no mundo, nas relações, de como os rostos dos outros nos atravessam a alma, de como os nossos gestos podem ser de vida ou de morte, por vezes propositados, conscientes desse bem ou mal feito, outras tantas, talvez a maioria, inconscientes, resultados de aprendizagens de tanto, mas tanto que vivemos nos inumeráveis segundos da existência desde o primeiro grito a afirmar a nossa presença. E se há dias escrevia como me sinto pequeno, hoje, faço-o a dar conta do imenso que nos atravessa quotidianamente a vida.
Jesus desafia os discípulos a atravessar para a outra margem. Detive-me neste versículo. A existência é uma travessia de margem para outra, onde a meio podem surgir tempestades, emocionais, de acontecimentos, que nos levam a sentir perdidos. Ainda mais quando somos bombardeados de exigências para ser perfeitamente adequados à sociedade que impele a nunca falhar, errar, cair, fraquejar. E como é impossível a todos e tudo agradar, há que fazer escolhas nessa travessia. Jesus aponta o caminho da liberdade: as tempestades perdem o poder quando somos cada vez mais consciente da força do imenso que somos, sem necessidade de comparar.
Na nossa pequenez, a força no imenso que somos deve revelar os dons particulares, como na beleza de um arco-íris a atravessar a escuridão. Não somos conceitos, não somos categorias, não somos rótulos, somos pessoas chamadas a viver o amor. Como? Na travessia do perdão, de impedir que o nosso coração seja invadido de rancor, de pedir ajuda, se assim for necessário, para libertar de tudo o que impeça de ser e dar vida, recordando que temos nas mãos poder e todas as cores para criarmos uma existência plena de significado, para nós mesmos e para o mundo que nos rodeia. Há a perder o medo de fazer a travessia da existência. E o amor acontece.
Poema de Matsuo Bashô, em “O ermita viajante - haykus - obra completa”, ed. Assírio e Alvim
[Secção outros tons] Em cada dia de escuta, confirmo: o desejo incessante de habitar-me de luz. Aí agita-me o amor. E no silêncio, atravessando as sombras, respeito os tempos que não são meus, observando e agradecendo os voos iluminados de liberdade.
[Apontamento breve depois de ler alguns comentários que pululam pelas redes sobre esta ou aquela mãe, este ou aquele pai, esta ou aquela pessoa refugiada ou em busca de melhores condições de vida, vítima de assédio, de orientação homossexual, esta ou aquela acção menos feliz de alguém] Descansa-me muito saber que é Jesus quem julga no juízo final. E ainda mais ter o Espírito Santo como advogado bate tudo. É que se fossem algumas pessoas que, sem distância crítica e reflectida, nem sentido do outro, julgam, acusam, atacam, denigrem e matam pela palavra, apenas porque sim, por estarem frustradas, por terem perdido a noção de empatia, tudo se tornaria demasiado assustador. Mas, vale-me saber que quem julgará lá no final dos tempos é Jesus, que não veio para condenar, mas salvar.
[Secção conversas soltas]
- P. Paulo, porque é que as pessoas se julgam e julgam os outros tanto?
- Por falta de amor.
- Só por isso?
- Não é pouco. A falta de amor abre-se em dores antigas mal resolvidas, em projecções de realidades ideais, dificuldade em perceber que elas mesmas podem decidir pelo mal e pelo bem, grandes desajustes no sentido, compreensão e vivência do amor, conforme o que aprenderam ao longo da infância e adolescência. Ao julgar, põem o centro na outra pessoa, seja por comparação, seja por idealização, desfocam-se do essencial.
- Então é difícil sair desse julgamento.
- Prefiro dizer que é exigente. Depende se a pessoa realmente quer ou não sair desse lugar de julgadora. Aliás, se quer sair dos lugares desajustados da existência: julgadora, vítima, agressora, ferida, etc. É exigente, porque, infelizmente, esses tornaram-se lugares de referência, conhecidos e aparentemente seguros. Sair daí é muito duro. Mas, se tal não é feito, não encontra a liberdade do amor.
- Há que mesmo viver a profundidade do amor. Agora compreendo quando diz que saímos dos julgamentos pelo amor.
[Coisas na vida de um padre tripulante na Jesuit Airlines em code-share com a Air Vaticano] A conversa de galley, no podcast “Conversas com Asas” da APTCA - Associação Portuguesa de Tripulantes de Cabine, estava prevista ser de médio curso, mas o voo continuou e acabou por ser de longo.
Desta vez, andámos a volta de temas como: O que é a fé e de que forma nos equilibra em momentos de crise? O que distingue a fé espiritual e a fé religiosa? Que adaptações e aproximação têm existido entre a Igreja Católica e as comunidades? A resiliência emocional. Que papel tem a autoestima no caminho do amor próprio? A humanização do amor e a empatia.
É possível ouvir em:
Site Aptca: https://aptca.pt/podcast-conversa-com-asas/
Spotify: https://open.spotify.com/episode/3EPjNjUbTJ63FFzzquIuBD?si=cbded542fe46490f
[Breve oração ao anoitecer]
Agradeço-Te
apesar da vontade de pressa,
a transição na suavidade do tempo
a abrir o silêncio na aprendizagem da espera
Peço-Te
raízes a suster a leveza da passagem
[Secção pensamentos soltos sobre a vida] Há dias em que me sinto verdadeiramente pequeno. Mesmo minúsculo. E não tem mal. É por isso que a parábola do grão de mostarda me diz tanto. Desde há pouco mais de um ano que tem feito em brisa suave muito eco em mim, como se concentrasse o que sinto e vivo da fé. O pequeno da fé. O pequeno da esperança. O pequeno do amor. Ou outros modos de irmos tirando capas, véus, cargas de imposições sobre a relação com os outros, connosco mesmos, com Deus. É um desafio de vida sermos grão de mostarda.
Desde há alguns anos, no último em particular, que tenho escutado muitas pessoas. Algumas de forma mais regular, muitas tantas de forma pontual. Já companheiros mais velhos me tinham falado do impacto que a escuta de pessoas causa na alma. E causa mesmo. Cada história um terreno sagrado, onde, sem julgamentos, se identificam dores, culpas, tomada de consciência de luzes e sombras que permitem torná-lo fértil de fé. Recolho-me e na minha oração amplia-se a vastidão da humanidade, como espectro do imenso que não pode ser categorizado com rótulos rápidos, simples, banais e tantas vezes mortíferos da dignidade. A obrigação da grandeza e da opulência tem levado a que tantas pessoas se sintam, consciente e inconscientemente, esmagadas de comparação ou de idealização de realidades sociais e religiosas. E quando nos apercebemos com seriedade das coisas, vemos e sentimos nas entranhas como o mais pequeno é o mais universal.
Há dias em que o silêncio nos envolve dessa recordação de pequenez. Onde estivermos, somos convidados a parar, fechar os olhos, respirar fundo, percorrer o corpo com as mãos, tomarmos consciência da presença de quem somos, sem mais nem menos, apenas o que é. E, dando graças, permitirmo-nos amar. Daí sairão os ramos que abrigarão as aves do céu e darão abrigo, em sombra fresca de dia de Verão, a quem de nós se aproximar. E soltar-se-ão as gargalhadas calorosas de quem vive a liberdade em Deus. O fruto da vida será, já é, abundante.
[Secção boas notícias em dia do Sagrado Coração de Jesus] “Saí num banco, em emergência. Entro em casa pelo meu pé de mão dada com o amor da minha vida.” Foi a expressão do meu pai no regresso a casa, seis meses depois do grande susto. Fomos buscá-lo ao Centro de Reabilitação, onde demos o grande abraço acumulado. Tivemos os ensinos: ajudar a levantar, a fazer as transferências da cadeira de rodas para algum lado, entrar no carro e, em especial, o reforçar dos terapeutas: ele tem estratégias para se cuidar sozinho. Está autónomo no vestir, no comer, na higiene. Claro que é uma nova etapa, onde continuará a reabilitação fisioterapeuta. Agora, desde casa é um exigente processo de adaptação à nova realidade. Têm sido meses de pensar muito. O AVC aconteceu em Advento. Atravessámos todos os tempos litúrgicos fora e dentro nas vidas pessoais. E tem alta no dia do Sagrado Coração de Jesus. Comentava-me um terapeuta: “é tão bonita o amor que eles têm um pelo outro. Quando o seu pai me falava da sua mãe, notava-se a paixão desde os inícios.” Como filho, sinto-me agradecido por este amor dos dois. É uma nova etapa, sim. Estamos muito agradecidos, em especial o meu pai, por todas as mensagens, pensamentos e orações de amizade e carinho. Que os seus corações continuem envolvidos pelo Coração que dá Vida em abundância. E que Ele também a cada pessoa encha de Luz e Vida.
[Secção coisas de nada] Na busca de fotografias, encontrei esta. Já tem uns anos. Chamei-lhe, em piada, “auto-retrato-fragmentado”. Com o passar do tempo, também através da experiência da pequenez do conhecimento do meu, nosso, lugar mais concreto, dou-me conta de que também somos muitas fragmentações do sentir e pensar. O exigente caminho da humildade é mesmo ir ajustando a coerência da aprendizagem dos direitos e deveres. Há a tentação de nos acharmos isolados na existência. Mas, não, precisaremos sempre dos outros, no respeito e cuidado, que nos desafiam a esse lugar concreto. Os fragmentos ligam-se, em pontes, quando nos libertamos da necessidade de nos completar e nos abraçarmos à responsabilidade de nos complementar. Aí, também encontraremos humanidade.
[Secção coisas de tanto, enquanto oriento Exercícios Espirituais] Quanto mais escuto em contexto de Exercícios Espirituais o caminho que cada pessoa faz consigo e com Deus, mais fascinado fico com a complexidade do ser humano e a beleza que Ele é. Também me dá muito que pensar o desajustado e até mesmo o mal que se fez e faz em nome de Deus. Compreendo zangas, tristezas, renúncias de fé. Ainda assim, a paciência na espera, cuidado e respeito que Ele tem connosco é lugar do Seu Amor por cada pessoa.
[Breve oração ao anoitecer]
Agradeço-Te
o toque de veludo a amaciar o silêncio
do necessário descanso reparador
Entrego-Te
quem me convidaste a amar
na escuta, na partilha, na vida
AA
[Secção pensamentos soltos em dia da Criança] Os anos que passei mais próximo de crianças ajudara-me a conhecer melhor o ser criança. Observava as brincadeiras, o estar de cada idade, também as suas conversas, o seu lado emocional e capacidade imaginativa. Está muito arraigada a ideia de que as crianças não se apercebem da realidade que as circunda, sobretudo as conversas de adultos. Não só se apercebem, como guardam o sentir da luminosidade total à sombra mais profunda.
Agora que acompanho sobretudo adultos, vejo o ganho dos últimos anos a observar as crianças e adolescentes. São tantos os adultos que em criança ouviram conversas duras, assistiram a gestos bruscos e viveram incómodos que muitos crescidos na altura acharam que não se apercebiam. E agora, com delicadeza, permitir voltar ao sentir de criança para poder acolhê-lo na sua dor, tristeza, desconforto, sem menosprezar, ridicularizar e, mais uma vez, apressar ou desprezar. As crianças têm grande capacidade de resiliência e no desajustado aprendem a sobreviver. Muitas crianças são forçadas a crescer e etapas ficam por respeitar. Depois, à medida que crescem, no desajuste ou conflito repetem os padrões de defesa, normalmente de forma inconsciente. Que bonito podermos publicar as nossas fotos de crianças. Todos o fomos e de algum modo somos. Mas, mais que tudo, ao nos permitirmos crescer, atravessando dores mal respeitadas, sermos capazes de ajudar as crianças serem crianças, os adolescentes serem adolescentes e nunca impor que sejam adultos em miniatura à medida das projecções dos crescidos, em particular mal-amados, frustrados, cansados, desejosos de sentirem amadas as muitas dimensões em si que ainda não o foram.
É como adultos que percebemos como as crianças têm de ser profundamente respeitadas na sua idade, no seu sentir, sem apressar maturidades, dando-lhe, sim, a possibilidade de voar na alegria até ao infinito. Essa mesma alegria vai ajudá-las a ser plenamente crescidas, a respeitar o tempo das emoções e do intelecto, ganhando liberdade de vida e de sonhos. Feliz dia da Criança.