domingo, 31 de outubro de 2021

Halloween e Todos os Santos


[Secção pensamentos soltos sobre Halloween e Todos os Santos] Desde pequeno que o mundo da fantasia e do fantástico me fascinou. Tenho a dizer que em parte até me salvou. Explico: na sessão de psicoterapia em que pela primeira vez me dei conta das dores contidas do bullying de há anos, voltando a sentir as dores dos pontapés e os gritos, solucei em lágrimas. Às tantas, a Asu pergunta: “o que te salvou?” Sem hesitar, recordando o livro e filme A História Interminável, respondi: “a fantasia!”. 


O mundo simbólico, de que também muito podemos encontrar nos textos bíblicos, abre muitas perspectivas. Quem diz o mundo simbólico, diz também o fantástico, inclusive o tenebroso. Os monstros, fantasmas, vampiros, bruxas, demónios, seres das trevas, mostram o lado desconhecido da alma e da vida a que é necessário dar nome e amar. Libertar as crianças, os adolescentes e os adultos do medo só acontece quando enfrentamos precisamente os medos e males escondidos no mundo interior. Por vezes tem de ser com humor. Sem grandes rasgares de vestiduras por vir de outras tradições. Não me parece que se invoque o mal. (Também em nome de Deus, infelizmente, se fez e faz muito mal com aparência de bem em imposições moralistas de culpa e pecado.) Os fantasmas devem aparecer para ter nome e assim dissiparem. Os vampiros para serem amados. Os monstros para serem curados de traumas vários. 


Os santos foram os primeiros a atravessar as suas noites tenebrosas, enfrentando os demónios que os dividiam. Com a ajuda de Deus fizeram dos seus combates espirituais caminhos a chegar à compaixão e anúncio de vida. Quando enfrentamos os monstros pessoais, com a ajuda de Deus, ganhamos liberdade diante de tradições que podem não ser nossas. Atravessando-as, ganharemos o Pão por Deus de alma e vida, com nova luz. Hoje compreendo que não foi a fantasia que me salvou, mas a criatividade de Deus que permite, desde o simbólico, ir a outros mundos buscar forças para sermos mais livres neste, combatendo as trevas desde o amor e o humor. Sem sustos e com muita alegria.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

42



[Secção vida]

42 anos

a guardar nomes e rostos, histórias e orações, poemas e voos, danças e movimentos, silêncios e palavras, emoções e pensamentos, sombras e luzes, a contribuirem para o meu caminho de crescimento até ser semente. E agradeço a Deus. Tudo.


segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Mão de asa


[Secção coisas de nada] A rever fotografias passo por esta tirada diante de outra de Wolfgang Tillmans, em Serralves. Recordo-me em imaginações de momento: de braço esticado ao céu, ganhava asa. Agora ao vê-la novamente penso no pequeno que é imenso na continuidade do ser para lá da pele. Somos nós, quando percebemos a profundidade de mistério que nos habita. Tomar ainda mais consciência de ser criado à imagem e semelhança de Deus dá-me sentido de reverência, nessa extensão do todo que nos entranha a existência. É-nos concedido o poder de criar, de agir, de amar nas ténues fronteiras de bem e mal, morte e vida, ter e ser, unir e separar. No seguimento de nós, para lá da pele, seremos capazes de voar à medida que nos formos libertando da arrogância de pureza julgadora e enraizando na limpidez do gesto de amor ao próximo.


domingo, 24 de outubro de 2021

Sementes depositadas


[Secção letras verdes] Depois de uma semana imensa e intensa na escuta, a abrir outra plena de vida.


quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Sentir de corpo


Pedro Villa


[Secção pensamentos soltos sobre corpo] Há dias estive à conversa numa formação de acompanhamento espiritual a decorrer na Argentina. Pediram-me para falar da importância de corpo no acompanhamento. Este tema é fascinante. Cada vez mais se percebe como O Corpo Não Esquece,(uso o título na tradução portuguesa do imenso e importante livro de Bessel Van der Kolk, psiquiatra que dedicou a vida a estudar questões de trauma). Nós somos mais que intelecto e o sentir, mais ou menos consciente, manifesta-se por todo o ser.


Apesar de ser algo transversal a todas as pessoas, desta vez penso particularmente na vida religiosa. O dualismo espiritualista que anula o corpo está infelizmente ainda tão, mas tão presente, que incapacita viver bem a vocação. Cansaços, frustrações, que levam desde a infantilidades à rudeza no trato, mesquinhez, inclusive com violência a vários níveis estão presentes e precisam ser vistos com atenção, para o bem de todos. Acompanhar desde corpo é permitir conhecer desde o todo e permitir que o Espírito habite no concreto, para profundamente libertar e reconciliar. As idealizações e auto-enganos moralistas impedem a presença de Deus. Às vezes é preciso recordar que Deus encarnou, não se idealizou. Assumiu corpo, carne, entranhas, vida em movimento pleno e total. 


Na conversa, dizia com humor que precisamos dançar mais. Bem, ou pelo menos saber como habitar o mais plenamente possível a existência no movimento, no sentir de corpo, que permite atravessar todas as sombras, de modo a crescer, a sermos adultos, também na fé, e levar-nos à liberdade do serviço ao outro, tanto na oração e escuta em acompanhamento ou sinais dos tempos, como no cuidar de quem mais sofre. E o reino de Deus ficará mais próximo, onde haverá festa e alegria entre todos e todas os que se atrevem a ser livres e autênticos no amor e no serviço.


terça-feira, 19 de outubro de 2021

Breve oração



Auto-retrato atravessado pela peça “Reacerto para dia luminoso” de Nuno Sousa Vieira, exposto na Brotéria



[Breve oração ao anoitecer, ainda em eco do filme A Metamorfose dos Pássaros]


Agradeço-Te

as recordações reveladas

de pão acabado de sair do forno

ou de palavras escritas, ditas, sussurradas,

nas horas em que Te quis encontrar

pelas células da pele ou das folhas ou

dos encontros fugazes a repensar a vida


Peço-Te

não desperdiçar a vida

com barreiras e dar fluidez

ao sentido dos sentidos

com sementes de paz e de infinito


segunda-feira, 18 de outubro de 2021

46 anos de casal


[Secção Vida em Celebração] 46 anos: celebram a minha Maria e o meu José de vida partilhada. Na mão entrelaçada há sempre aquele momento em que o dar e o receber se fundem. Naquele dia, o da foto, comprometeram-se ao amor na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Este último ano tem revelado esse amor profundo que ambos sentem um pelo outro. Como filho, sinto-me emocionado ao testemunhar a força da recuperação do meu Pai e a delicadeza no cuidado da minha Mãe, em caminho lento de vida nova. Dizia-me o meu Pai há dias: quero casar outra vez. Do outro lado do telefone, ouvi o pedido de casamento. Tens de ser tu a casar-nos, acrescentou. Como não agradecer este dia, em particular o amor de um pelo outro? É a minha história também. Com humildade o digo, se ajudo outros a serem felizes é também graças a este dia e à vossa decisão de, diante de Deus, dizer sim um ao outro, aconteça o que acontecer. Queridos Mãe e Pai, este ano foi muito intenso para nós, mas tão profundo no Amor. Gosto muito de vocês. Com carinho, um beijo e um Abraço, Filho.


domingo, 17 de outubro de 2021

A noite e a cor da alma



Uma página de ‘O Livro das Questões’ de Edmond Jabès


[Notas soltas depois de breves momentos de oração] Volto a escrever sobre a noite. Recordo visitar a minha avó Constança, no profundo Alentejo, e ficar de noite à luz de fogo. Apetecia-me voltar com o entendimento de hoje. Ainda assim, voltam-me ao pensamento as imagens das brasas e das labaredas a encantarem-me para mundos distantes. Quase que ouço os estalidos. Quase que vejo fundir-me com a luz na escuridão. Tem sido assim a minha oração. A noite chegou. Não a sinto escura. Mas necessária. É mais uma travessia de purificação, despojando e integrando outros tempos, deixando que Deus me mostre mais um pouco do todo. É necessário. Só assim posso compreender de entranhas o sentido de amar, libertando as ânsias que ainda ecoam de poder ou poderes que desviam o serviço. A noite encerra beleza, da simplicidade, do que é, sem mais nem menos. E há que atravessar a da alma, para perder todos os medos e abraçar o luminoso infinito que me habita, que nos habita. Deus é irresistível. Como estalidos e labaredas de fogo vibrante pela noite.


quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Breve oração



[Breve oração ao final do entardecer]


Agradeço-Te

as travessias de fogo

a purificar as entranhas 

desde a verdade límpida

de todo o sentir da vida


Peço-Te

cruzar o tempo e o espaço 

ao encontro da plenitude

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Luz e Sombra


[Secção coisas de nada] Tirei o dia para maior silêncio, leitura e descanso. A dar um pequeno passeio final de tarde pelo exterior na Casa da Torre, vejo a minha sombra alongada, envolta de manchas de luz. Tenho contactado com as sombras de muitas pessoas. Faz parte da vida de quem escuta. Que só é possível viver isso bem, quando se contacta com a própria sombra. Das primeiras vezes, é terrível. A imensa quantidade de preconceitos, em jeito de véus ou barreiras, religiosos, sociais, culturais, levanta defesas e, se não formos determinados (e muitas vezes é preciso ajuda para o sermos), fugimos, em negações ou ainda mais juízos. Mas a sombra permanece. E aumenta. Enfrentar o nosso lado sombrio é fundamental para a liberdade, para deixar que a compaixão ganhe lugar na existência. Não se trata de heroísmo, mas de caminho de muito respeito e verdade connosco e com os outros. Quando a sombra é enfrentada e atravessada, surge ressurreição: uma vida nova de sentir, entender e compreender a realidade, que conduz à construção de comunidade, para lá de qualquer competição, em colaboração com os dons, ou manchas de luz, recebidos.


segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Caminho de vida


[Secção memórias e vida] Encontrei esta fotografia na casa dos meus pais. Tinha 18 anos. Pedi a uma fotógrafa profissional que me tirasse algumas fotografias com o intuito de concorrer a um concurso de moda. Intuito, porque não cheguei a concorrer. Recordo a sensação: vergonha. Afinal, pensava eu: “sou feio! Vão gozar ainda mais comigo.” Apesar de nesse tempo já ser bastante social, na organização de muitas actividades, por dentro ainda reinava a desconsideração provocada pelo ridicularizar, entre outras coisas, do meu nariz, das minhas orelhas, do meu vestir fora de moda, da minha timidez, pelo mau jogador de futebol, pela falta de macheza.


Mais de 20 anos depois, a olhar a foto, sorrio. É tanto o que passamos na vida. Tanto, mesmo. E as feridas, as sombras, as dores, podem ser atravessadas de nova luz. A direcção espiritual em conjunto com a psicoterapia, continuando ainda o trabalho pessoal desde corpo em movimento autêntico, ajudaram a libertar-me das angústias do passado e a caminhar cada vez mais com pés firmes de presente. Ainda assim, há ecos que subtilmente surgem. Há dias, partilhava com um bom amigo as vergonhas que ainda surgem desse tempo. 


A aprendizagem: nos dias seguintes, fiz desse surgir os pontos de oração, sem julgar nada do aparecesse de memórias, sentimentos ou desejos: de que ou quem tens vergonha? E medo? E zanga? A quem gostarias de ter dito que amavas, mas não te sentias nem digno, nem capaz? As respostas afloraram luminosas. Fui entregando a Deus, permitindo o perdão. Vi o adolescente a sorrir. Aquietando-o, amei mais um pouco como adulto. Depois, senti o silêncio do novo nascer: “segue-Me! Continua a ajudar a quem te confio a fazer caminho até à beleza da Luz.”


domingo, 10 de outubro de 2021

Saúde mental


[Secção pensamentos soltos sobre saúde mental] Quanto mais leio, investigo, escuto, rezo sobre corpo, mais me dou conta do imenso que somos, enquanto indivíduos em e na relação, e do tanto nesse imenso que está desconhecido. A pandemia veio abrir muitas portas desse desconhecimento. Causou e causa medo. Rapidamente queremos voltar à normalidade, chamando-lhe até de “nova”. No entanto, desde a fragilidade que também caracteriza o imenso de corpo, somos afogados de perguntas e emoções, desde a informação excessiva de como devemos ser e estar. Esgotam-se ansiolíticos e anti-depressivos, como desejo de voltar rapidamente à normalidade sem ter de enfrentar a exigente peregrinação de sabermos quem somos, em luzes e sombras. O problema: depois do alívio, as sombras tendem a aumentar e abafar o ser. 


A saúde mental ainda é a a face diminuta da saúde global. No entanto, a falta dela, em maior ou menor grau, atinge grande parte da população. Ainda assim, descarta-se com leviandade, não se percebendo depois como “uma pessoa tão boa” tomou decisões marcantes contra si e contra outros. Pois, é fundamental dar-lhe atenção e pedir ajuda. Mas também é primordial que quem toma decisões políticas e profissionais conheça o mundo da interioridade para lá de dinheiro. Cuidar da saúde mental exige tempo, e não é de mês a mês, ou mais. E feito em particular, infelizmente com as condições sociais que temos, é impraticável para milhares de pessoas. 


Apesar da normalidade exterior que se começa a viver, há tremenda anormalidade, desfoque, inquietação interiores. Por isso, tenho para mim que a linha da frente actual terá de ser composta por escutadores. A sombra tem de ser atravessada de luz, no respeito pelo sentir. E muitas vezes a luz não surge de auto-ajuda, mas através de pessoas que se capacitaram para a transmitir, tais como psicanalistas, psicoterapeutas e psiquiatras. Pedir ajuda não é uma limitação, mas o gesto que pode separar a vida da morte da alma. A experiência diz-me que as sombras atravessadas de luz tornam-nos mais humanos. Se respeitarmos a saúde mental, todo ganhamos em corpo imenso e pleno de humanidade.


sábado, 9 de outubro de 2021

Breve oração



[Breve oração antes de adormecer]


Agradeço-Te

o apaixonar-me por rostos 

que me desafiam

às perguntas como passos

até ao profundo da existência 


Peço-Te

sabedoria nas respostas 

em tons de fogo e de infinito 

ao encontro de mais um véu rasgado

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Encontros






[Coisas na vida de um padre] Dia intenso. Depois das Jornadas sobre Cuidados Paliativos Pediátricos, segui para um casamento. Abençoei a boda de dois tripulantes de cabine. Fui apanhado a fazer demonstrações de segurança, fardado de Jesuit Airlines. Entretanto, eis que me dizem: “Sr. Padre já conhece o rei?” E ouço da parte do “rei”, depois da gargalhada: “Há rei, há bispo, os peões estão animados, a partida está ganha!” E rimos os dois. Ofereceu-me o último cd: “tem de ouvir esta: A Vida de Pároco”. Entretanto na festa da boda, eis a primeira música: “Qual o melhor dia para casar?”. Daqui a pouco, reunião de CVX (Comunidade de Vida Cristã). Sim, todo o dia atravessado de vida, esperança e alegria.


quinta-feira, 7 de outubro de 2021

Isso basta


[Secção letras verdes] Escritas numa breve paragem enquanto ultimo a minha conversa, amanhã, sobre espiritualidade e cuidados paliativos pediátricos, nas I Jornadas de Cuidados Paliativos Pediátricos.


quarta-feira, 6 de outubro de 2021

À escuta


[Notas nocturnas enquanto vagueio pela oração] Escutar muitas pessoas é de valor incalculável. Ao mesmo tempo que, enquanto humanos, somos brutalmente parecidos, também estamos nos píncaros da diversidade. A carne é a mesma: daí as emoções e a razão que levam a interpretar imagens, sons, memórias, acontecimentos desde esse lugar de nome existência. Sem tempo. Melhor, noutro tempo para lá da passagem de minutos ou anos. Tempo existencial que repete o Teu suave grito a nos chamar ao presente. Ainda assim, a dar conta que em nós habita a possibilidade do pior e do melhor. É tão duro enfrentar as sombras mais sombrias. É tão duro perceber que o pior deus é o que nos quer impedir de amar. Esse deus reveste-se de moralismo, que impede o rasgo de luz na verdade, levando à imposição de gestos diante de mim e dos outros. Já Tu, pois, Tu puxas-nos ao crescimento, à liberdade, enquanto revelas o silêncio e a compaixão desde a verdade mais límpida, sem adereços, ornamentos, apenas a simplicidade do que é. E isso é tão terreno. Nada controlador. À espera do tempo certo para dar fruto, mesmo que passe pela podridão. E como aparas as nossas podridões, doendo, chorando, em especial por aqueles que te abusam o nome, voltando a morrer uma e outra vez, por cada um de nós. Para nos dares vida. É isso o amor, não é? Faz-me pequeno e torna-me cada vez mais terra.


terça-feira, 5 de outubro de 2021

Lágrimas


[Notas breves sobre lágrimas] As lágrimas são as palavras das emoções. Deixá-las sair quando afloram é como escrever um texto sobre a existência, da alegria, à tristeza, passando pela efusividade e pela dor mais profunda. Será um passo gigantesco de humanidade quando se deixar de pedir desculpa por se se emocionar com lágrimas. Outro passo gigantesco: haver cada vez mais gente que as acolham sem pressa, sem julgamento, a apontar caminhos de liberdade. 


domingo, 3 de outubro de 2021

Breve oração



[Breve oração ao anoitecer] 


Agradeço-Te

os casais. Todos. 

Ajudam-me a ser padre,

na escuta da vida, em existência

partilhada de força e vulnerabilidade,

na beleza da pele que se deixa envolver

de amor a abrir luz e caminho de liberdade


Entrego-Te

os que me confiaste a abençoar

e os que me confias a reconciliar


Peço-Te

consciência 

para não precipitar juízos sombrios;

clarividência 

para ajudar nos encontros de bem-dizer


sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Flores e dedos e flores


[Secção coisas de nada] Passo por elas diariamente. Entre o riso e a gargalhada, penso que a natureza também tem o seu amor e o seu humor. Podemos ser mais profundos: as flores apontam ao céu. Ou então, mais marotos: apontam o caminho a gente mal-encarada. Haja alegria. Bom fim-de-semana!