sábado, 31 de janeiro de 2015

Teologia dos Abraços



Matthieu Paley


Escreveu-me um amigo, a propósito do post de há dias sobre a situação da violência doméstica: “adoro a tua Teologia dos Abraços.” Dei um sorriso. Esta frase fez-me recordar muitas coisas, também da nossa amizade. Ao lê-la pensei na quantidade de vezes que fico em silêncio, sem saber que responder, quando escuto a vida de algumas pessoas… ou percebo, para além do que está a ser dito pelas palavras, a realidade mais forte da existência que leva a que sejam rejeitadas ou pela sociedade ou por algumas paróquias ou pessoas ditas religiosas. Há pessoas muito magoadas, doridas, sofridas, com feridas físicas e de vida que lhes atravessam a alma. Muitas vezes não vai de palavras, mas de gestos que dão confiança e que curam, ajudando-as a ganhar ânimo. Tanto pode ser o abraço, como a escuta atenta sem fazer qualquer julgamento das suas vidas. Isto parece básico, mas quanto mais estudo e me apercebo da complexidade humana, mais tenho noção da necessidade de muitas vezes voltar a aprender a respirar, a andar, a amar… neste caminho de ser padre.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Life Is Victory



Cyril

Estes últimos dias têm sido muito particulares em reflexões em torno da humanidade, disto de ser humano. Por isso, pelo que sinto também de vocação de ajudar a tornar o mundo melhor, tenho saído do “retiro de tese” para partilhar sobre o que me tem tocado tanto nestes tempos, sobretudo desde os recentes atentados no mundo. Hoje tive um encontro, programado de agenda, inesperado no conteúdo, que me animou bastante. Estive à conversa com a Noy, presidente da LIV - Life Is Victory - Foundation. Falou-se da Companhia de Jesus, de África, de reconciliação e cura (também através da arte em geral, dança em particular) de mulheres e crianças devastadas pela guerra. Mais capítulos surgirão. E é simbólico ser neste dia dos 70 anos do fim de Auschwitz. Termino o dia agradecido.

Mais sobre a fundação: http://www.livfoundation.eu



Sandrine

70 anos




Kacper Pempel/Reuters


As datas redondas têm maior peso. 70. 70 anos da libertação dos campos de morte. Campos que matavam porque não se era perfeito, em raça dita pura. O fanatismo do homem que conseguiu arrastar multidões a partir da emoção contra o diferente, contra o que a seus olhos não era puro, impedindo assim a existência. Talvez hoje se escute, como já li, “que seca, hoje vai tudo falar de Auschwitz… do holocausto”. Sim, que se fale, que se recorde, e muito, mantendo viva a memória, tal como ainda estão vivas muitas pessoas que têm o infame número tatuado no braço, essa marca de pele que tentava anular o nome, a existência. Foram milhares de judeus, de cultura e religião, centenas de negros, de homossexuais, simplesmente por serem quem eram, e de cristãos que se opuseram frontalmente a essa chacina. 70 anos parece que foi há muito tempo. Mas, na história da humanidade foi “ontem”. Recorde-se também, para impedir que o ódio volte a tomar terreno entre nós, tentando seguir Lévinas, filósofo judeu francês, que apesar de ter perdido toda a família nesses malditos Campos, escreveu que somos infinitamente responsáveis pelo Outro, inclusive pelo carrasco. Lendo isto, faço silêncio, mantendo vivo o sentido de humanidade.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Rosa... sem espinhos: reais e metafóricos




Li Hoang Long


Dava mais um dos meus passeios. Encontrei a D. Maria [nome fictício]. “Olá, está boa? Já há algum tempo que não a vejo pela Missa.” “Sabe como é sr. padre, a vida… a vida…” Reparei que tinha uma mancha estranha perto do olho. Apercebeu-se do meu olhar e prontificou-se, antes que fizesse qualquer pergunta: “tropecei em casa e bati no móvel.” Nestes dias tenho andado mais sensível e emocionei-me. Saiu-me: “D. Maria, posso dar-lhe um abraço?” Ela percebeu que eu percebi que não tinha sido móvel nenhum, mas uma mão. Não sei se fechada. Não sei se aberta. Mas foi uma mão que lhe fez aquela mancha. Aceitou o abraço e chorou. Chorámos. “Tem tempo, sr. padre?” Como não havia de ter. E conversámos. Recordo esta história por ler que esta semana foram 4 mulheres assassinadas em Portugal. Quantas mais começam a ser pouco-a-pouco assassinadas na sua dignidade? Hoje, na Missa, numa tradição na paróquia, os casais renovaram os votos de matrimónio. Na homilia sugeri aos maridos para oferecerem uma rosa às suas mulheres. Não disse, mas subentendia-se: sem espinhos… reais e metafóricos.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Desabafos sobre a mística e a humanidade.



Robin Hammod, “Lagos - Nigéria”


Nos últimos dias, em âmbitos diferentes, tenho tido conversas sobre a mística. Tanto da sua importância, como da falta dela no nosso mundo. A mística pouco ou nada tem que ver com arrebatamentos espirituais, em transes de loucura, nessa concepção ridícula que se tem dos crentes. A mística também tem que ver com o sentido de descobrir o “para além” da realidade. Recordo Lucio Fontana, pintor argentino, que ao traçar as telas convidava a que não se ficasse apenas pela contemplação da mesma, indo mais longe no ver das coisas. Acrescento outro verbo: o escutar. Sim, ver e escutar a realidade que nos envolve de modo a ter sentido crítico e que nos ajude a converter, a humanizar. Nestes dias tem-me sido difícil ver e escutar. Têm sido muitos os “gritos” e as imagens que surgem a partir dos recentes acontecimentos com maior destaque em Paris, mas também na Nigéria, na Síria e na Arábia Saudita (entre outros). “Gritos” e imagens à volta da religião, da sociedade, da identidade, ou melhor, da busca dela. Ajuda-me ter amigos de muitos quadrantes e feitios para não me ficar pela crítica fácil às realidades, e foram muitas as boas conversas que me fizeram desmontar e apurar o ver e o escutar. Por vivermos no emotivismo, facilmente se vive ora em apogeu, ora em declínio, num complexo narcísico colectivo. A rapidez das redes sociais, que para muitos constitui o lugar da verdade absoluta (se antes era “aparece nas notícias, logo é verdade”, agora junta-se “se aparece no facebook ou no twitter, logo é verdade”), pode impedir o sentido crítico e, muitas vezes, a noção de bom senso diante das pessoas ou dos acontecimentos. Na sociedade está-se a perder a transcendência, ou por outras palavras, o Outro. O Outro que me convida a ver de forma diferente. Não para mudar radicalmente, mas para perceber que não estou sozinho no modo de pensar ou viver, seja de forma pessoal, seja colectiva. Tal não vai de “Eu sou” ou “Eu não sou”, nas diferentes alusões de busca de afirmação identitária. Tenho para mim que muita gente não sabe quem é verdadeiramente, agarrando-se à manada colectiva, garantido assim a segurança da existência nesse marrar contra algo. E isto acontece a nível social, político e religioso. Nestes dias a pensar sobre isto da identidade, isto do ser., dou-me conta que nem “sou Charlie”, nem sou “não sou Charlie”. No fundo, espero que sejamos mais do que essas definições. Espero que consigamos ser plenamente humanos. A reconciliação é um processo muito complexo, mas parece-me ser a chave para começar a entender, nos dias de hoje, a beleza da humanidade. Não numa abstracção diluída, mas em rostos concretos. Percebe-se que é uma questão de pessoas. Sim, as pessoas que os políticos, que paradoxalmente também o são, continuam a esquecer em nome de números, melhor, de cifras económicas. Como pessoas, há o profundo desejo de encontrar sentido na vida. Fomenta-se a formatação de conteúdos e impede-se a educação ou formação sobre os valores. Dar pilares profundos de existência, para que na construção da vida, havendo derrocadas, possam manter a estrutura fundamental da humanidade. Tudo em nome da poupança para colmatar défices. Pois, mas as más gestões, alienadas da responsabilidade  pelo Outro, pensando no “meu” poder, dão resultados que estão à vista. E temo que possa sair ainda mais caro… não em termos de dinheiro, mas em humanidade. Porque é que se esquece a história tão rapidamente? Talvez porque não se conheça, não se tenha estudado e não se tenha pensado dentro das ciências humanas. Mas isto… é o meu lado ingénuo e utópico… e a imensa força interior que me agita em querer contribuir para um mundo mais humano. Respiro fundo e sigo em caminho de conversão, na descoberta e vivência da mística.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Contra os atentados na Nigéria




Ontem, sem esperar, acabei por participar noutra manifestação, à qual também iria se soubesse que tinha sido convocada: contra os atentados cometidos por Boko Haram na Nigéria. Foi no Trocadéro. Estaríamos umas 300 a 400 pessoas. Nada que ver com o milhão e meio de há uma semana atrás. Como não podia estar muito tempo, fiquei o suficiente para rezar pelas milhares de vítimas, pelos terroristas, pela paz no mundo, em especial no coração de cada pessoa. Nestes últimos dias, tenho lido textos que destilam ódio contra os terroristas, contra a religião (em geral e em particular), contra os não crentes, onde se generaliza com uma brutalidade que, como já escrevi noutro post, se essas palavras fossem balas, facadas ou bombas, haveria muitos mortos… incrivelmente também em nome da liberdade de expressão (até sinto algum receio em usar o termo). Sim, há que combater a atitude terrorista, não só de lá longe, mas muito do que há “ao lado”, onde germina muito mal nas relações humanas e sociais. Infelizmente, os interesses económicos e de poder, em especial político, de alguns para alguns condicionam bastante a possibilidade da paz. No entanto, não me deixando alimentar pelo desespero, no quotidiano tento promover a paz, o respeito e, sim, a liberdade. Entre outras coisas, a rezar e também a escutar o outro, para além das diferenças que possamos ter em relação ao modo de pensar e habitar no mundo. 



domingo, 11 de janeiro de 2015

Paris saiu à rua contra o terrorismo



Paris saiu à rua. Literalmente. Já no metro apercebia-me que ía muita gente à marcha contra o terrorismo. Com o medo no ar, pois uma ou outra estação de metro acaba por fechar devido a um “Coli suspect”. Pode ser esquecimento, mas, infelizmente, há pessoas que brincam com a situação, como a senhora francesa que gritou do hotel da EuroDisney que era Haya [a mulher co-autora do 2.ª ataque em Paris], que levou à evacuação de todo o parque. Seja como for, esta também seria uma marcha contra o medo. Já se viu que estava muita gente. Foi bonito de ver a dignidade, entre o silêncio e as palmas, de todas as pessoas. Novos, velhos, famílias, estrangeiros de muitas nacionalidades, ateus e crentes (entre judeus, muçulmanos e cristãos) davam rosto à humanidade. Nos momentos mais silenciosos, rezei pela paz e, além das 17 aqui em Paris, rezei pelas cerca de 2000 pessoas que foram igualmente assassinadas na Nigéria pelos radicais terroristas Boko Haram, que não se coibe de fazer mulheres e crianças de bombas. Recordei também as que morreram em Tripoli, Líbano, em ataque terrorista. Não posso pedir apenas pela paz no cantinho onde estou ou quero estar confortável. Se hoje se juntaram milhão e meio de rostos que dão forma à humanidade, biliões de outros estão por esse mundo a desejar a mesma paz. Esperemos que se façam as devidas reflexões sobre todos estes acontecimentos, pondo de lado interesses económicos e de poder. Já no final, quando me aproximava de Nation, aconteceu algo para mim muito simbólico. Esta manifestações são lugar de encontro de humanidade, pois bem, no meio de tanta gente vivo o encontro com o Denis e o Rafael, dois grandes amigos. Foi simbólico, pois também é isto que quero promover na minha vida: encontros e abraços de paz. 






Em marcha pela Paz




Muita gente. Famílias, velhos, novos, silêncio, palmas, som de passos. Comenta alguém: "normalmente quando há manifestações as pessoas põem-se à janela a ver. Hoje não há ninguém. Percebe-se que estão aqui." Fala-se muitas vezes de humanidade, que se pode perder no abstracto. Neste momento vejo muitos rostos que a tornam concreta. Por estas ruas, com a nossa presença, pede-se o fim do terrorismo, o fim do fundamentalismo.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Sobre o mal...



Van Gogh

Eu já desejei a morte de alguém. Não me orgulho disso, não tenho qualquer satisfação por ter vivido esse desejo, nem nenhuma vontade que surja novamente. A recordação deu-se hoje de manhã, enquanto rezava tendo em mente tudo o que se passou aqui em Paris e, um pouco mais longe, na Nigéria. Depois expandiu-se em pormenores nesse tempo da minha vida. Conto um episódio. Estava na despensa de casa, ia buscar algo e ouvi a minha mãe comentar com uma vizinha que eu estava a crescer. Notava-se pelos sapatos. Apertavam-me. Na altura não era tempo de comprar muitos sapatos, mesmo se o crescimento era rápido. A minha mãe chegou a ficar 5 meses sem receber o ordenado. Era, como em muitos sítios infelizmente continua a ser, coisa normal: atraso no pagamento do ordenado. Voltando aos sapatos, a sugestão: fazer um corte à frente e assim duravam mais tempo. Por mim, sem problema. Dia de escola. Naquela altura era tímido, introvertido. Ora, sapatos cortados levaram ao gozo, muito gozo, em risos sarcásticos, a apontarem, com empurrões: “anda na moda!” “O panasca agora dá ar aos pés!” “Até sai cheirinho!” Gozo, muito gozo, risos sarcásticos. Este tipo de situações, como já por cá comentei, duraram anos. Sim, recordo o pensamento em desejar a morte dessas pessoas: “Que desapareçam da minha vida!” Estava tão cansado. Nessa mistura de sentimentos, o medo aprisionava-me e ajudava o ódio a crescer. Apesar de tudo, por muitos factores, não me deixei vencer por eles. Porque conto isto? Por tanto…, sobretudo por não ser nem político, nem governante de uma nação: como tal não irei tomar decisões ou medidas de fundo contra o terrorismo. Mas posso estar vigilante e preparar-me para não permitir que, p. ex., o ódio tome conta do meu ser e passe a controlar-me. É isso, estar atento, reconhecendo, como partilhei, que em mim também existe o combate entre o bem e o mal. Sim, irei amanhã à manifestação aqui em Paris contra o terrorismo. Continuarei a fazer o que posso ao nível social para mostrar a minha repugnância contra o fanatismo e extremismo seja de que espécie for. No entanto, para que isto tenha pleno sentido, vou fazer os possíveis para estar consciente do mal que também há em mim, para combatê-lo como posso, com ajuda de Deus e de outras pessoas, no tempo e na medida certos, impedindo que afecte seja quem for. Agradecido por ser livre, sem esquecer a história, calço os sapatos e continuo o caminho da conversão.


quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Respeito




Ao longo do dia andei pela cidade. Há mais polícias e exército armado. Houve mais situações de tristeza, como se sabe, pelas notícias e declarações. Se se encontra algo perdido com ar suspeito, tudo pára. Mas o que mais me tocou foi o telefonema de uma amiga francesa, em resposta à mensagem de voz que deixei ontem para lhe dar o olá de bom ano… e que nada tinha que ver com os acontecimentos. “Obrigado Paulo por teres ligado ontem! Soube-me muito bem escutar-te e dizer que rezas por mim. Um dos jornalistas era um dos meus grandes amigos. Já não tenho lágrimas para chorar. Por ele, por tudo.” De repente senti-me ainda mais próximo do ataque de ontem. Tal como me sinto próximo do Médio Oriente ou de África, quando, por exemplo, jesuítas dessas terras que vivem ou estudam comigo comentam das pessoas que conhecem que foram assassinadas. Têm de se fazer reflexões muito sérias sobre estes acontecimentos, mas não é hoje, nem nestes dias que se seguem. É muito cedo, pois neste momento fala o emotivismo e, normalmente, não é nem bom leitor, nem bom comunicador. Foram disparadas balas certeiras, mas as palavras em posts ou comentários agressivos por essa internet fora tornam-se balas que também matam de algum modo. É preciso mostrar que o medo não avança, e tal não pode ser com violência, gerando mais violência. É tempo de luto. E no luto há respeito. 

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Paris, 7 de Janeiro de 2015



Acabo de chegar da Place de la Republique. Por ser um lugar emblemático para a Liberdade, foi aí que começaram a concentrar-se as primeiras homenagens aos assassinados de hoje na sede do jornal Charlie Hbdo. Entre gritos “Nous sommes tous Charlie” e momentos de silêncio, sentia-se o misto de agitação, choque e interrogação. Todo o atentado causa muitas preguntas. Fiz silêncio. Rezei pelos que morreram hoje de forma brutal e vergonhosa. Rezei pelas suas famílias. Rezei pela paz. Rezei pelos assassinos. Rezei por todos os jornalistas e polícias. Rezei pela liberdade. Rezei pelo futuro. Não se pode deixar que o medo assuma o texto principal. Há o lado humano, mas vai haver aproveitamento político. Sinto tristeza, e algum nojo, confesso, por saber que há quem esteja contente por isto. E depois, em nome de deus (não consigo pôr em maiúscula). Não, Deus nunca pediria este tipo de coisas. Essas pessoas não são religiosas. São fanáticas de algo, tal como são todos os fanáticos que vivem extremos de estupidez, mesmo sendo laicos, sem professar qualquer religião. Avizinham-se tempos ainda mais complexos.