(Versión en español, todavía sin haber sido corregida, en los comentarios)
A noite guarda sempre mistério. Silenciosa ou espaço de festa, ruídos ou surpresas, traz a possibilidade de encontros. Uma noite com Kylián abre a porta da transcendência, não etérea, mas bastante terrena e humana. Para dar corpo a esta Noite foram escolhidas, por parte da Companía Nacional de Danza - Espanha, três coreografias de Jiri Kylián que, a meu ver, formam um ciclo. Três peças distintas, uma unidade.
Uma pessoa iluminada projecta a sua sombra sobre a tela: assim inicia Sleepless. Assiste? Vê? Estende os braços, rasgando o véu para a entrada na História que já começou. O mistério do outro lado, ao jeito de uma série de partos de novos acontecimentos, moldados pela relação de corpos: ora fogem, ora surgem, em parte e no todo que se completam ou complementam. O ritmo é frenético, quase gritante, agitando as rupturas interiores que a vida traça. Em contínuos nascimentos, a individualidade abre-se à relação e, assim, tal como nos primórdios da Criação, do caos ao cosmos, do ruído à harmonia. Poderíamos falar de transfiguração, no entanto, seria mais o peregrinar: “não há caminho, o caminho faz-se a andar”. Foi uma boa surpresa ouvir já quase no final a repetição deste verso de António Machado. A peça, a meu ver, de grande profundidade espiritual, faz pensar na identidade: própria ou de quem a busca. A saída e o retorno diário à casa, ao lar, onde no entretanto tudo acontece. O véu do templo rasga-se, sobe, desaparece, para revelar o tal outro lado. Mas há que descer do monte, continuando a fazer caminho, o caminho. No final, a porta estreita abre-se e, incansavelmente, entro de forma renovada na História...
...que, entre muitas experiência, se toca uma e outra vez a Petite Mort: segunda peça. A linearidade dos corpos, em floretes prolongada, agita o respeito ao som dos golpes. Uma mistura de subtileza, sensualidade e força na atitude de quem busca a honra, ou a liberdade ante modos de vestir carregados de Corte e festas palacianas, exclusivas para alguns. Aparecem as ondas, as modas, que mudam os cenários. O mundo é um palco, onde a exposição de quem o pisa é inevitável: daí a honra a defender. Em Petite Mort não encontro espírito, sim, a humanidade plena, quase visceral, suavemente retratada no erotismo do florete e nos negros decotes reveladores de outros desejos. Na tentativa de esconder a morte, de a evitar, no caminho que se faz ela acaba por surgir. Não será uma “pequena morte” a passagem da noite para o dia seguinte? Toda a semente tem de morrer para dar fruto novo... e a semente do amor, em êxtase vivida, não foge à bonita realidade. E na intensidade desse momento, os vestidos são abandonados, dando outro passo no percurso a fazer.
Por mais que se queira fugir, as perguntas existenciais tocam-nos à porta. Responder, ou pelo menos buscar a resposta, faz parte da essência de quem se diz pessoa. Da relação sai o encontro com Deus. Stravinsky dá o mote... ou serão os salmos? Também estes são um caminho do 1 ao 150. E é este último o mais presente no fim da Noite: Sinfonia dos salmos. Acaso? Não me parece. Da unidade conseguida nesta “trilogia”, este culminar é majestoso. Num cenário preenchido por objectos evocativos de oração, os corpos traduzem a linguagem dos repetidos louvores apresentados pelo salmo, pelo coro e instrumentos. O laudate de fundo não invalida a experiência da queda. Só pode haver verdadeiro(s) alelluia(s) depois de se passar pela(s) experiência(s) do sepulcro, nas suas muitas distintas formas: recordamos o dilúvio, o êxodo, o livro Job, o salmo 22, o salmo 50 [miserere], entre outras possíveis passagens e outros relatos. A oração ganha um outro sentido. Deixando de ser repetição mecânica de palavras, passa ao pulsar de movimentos do corpo, transforma-se em vida de quem a vive. Em meditação, reflexão ou contemplação percebe-se o abandono ao existir. Nesta História sou mais um que escreve outro sentir. Pois nesta História cada um compõe uma narrativa. O ser pode desaparecer, mas fica o registo do espaço e da memória que não deixa apagar os pilares do mundo.
Fiquei positivamente impressionado com esta Noite. Em tempos onde parece que há medo de tocar no Espírito ou no que é d’Ele, José Carlos Martínez, como director artístico da CND, evocando a grandeza de Jiri Kylián, propõe, no meu entender, uma entrada no Humano e no Divino. Como? Louvando o Senhor... com a dança, enquanto o caminho é feito a andar.