O filtro do tempo
Apesar de bom leitor de correspondência, memórias e diários publicados, e de gostar de ler neles as experiências, visões e opiniões alheias, admito manter uma relação algo distante com os blogues como expressão pessoal. Acho até que existe uma faceta - que diria “confessional” - da actividade “bloguística” que me parece frequentemente uma simples exposição, mesmo que voluntária, da vida privada dos seus redactores, por vezes mais falante do que aquilo que seria de esperar ou desejar.
Tendo sido criado num são desinteresse pela vida privada do próximo, e considerando a conversa sobre esta como uma falta de educação ou vício do intelecto, não percebo que os blogues assumam tantas vezes uma dimensão mais íntima do que estritamente intelectual. Nuns casos será por exibicionismo, noutros pode ser a expressão incontida de um grito de alma ou uma afirmação existencial, e admito mesmo haver quem o faça por um desejo de transparência digno de um protestante nórdico. Mas que tendencialmente não percebo, não. Também é verdade que cada um sabe de si e que não sou sequer obrigado a lê-los; e até aceito que pode aqui existir, da minha parte, uma inconsciente ponta de inveja por não conseguir manter um diário ou uma escrita pessoal com carácter regular em qualquer tipo de suporte.
De resto, estes meus rigores sobre a coscuvilhice não me pouparam no passado a divertidas acusações familiares de ter uma duplicidade condenável nesta matéria: não serão as biografias e memórias que leio, no fundo, uma vertente culta e distante da Hola! e quejandas? Que diferença existe entre interessar-me pela vida de uma princesa do séc. XVII ou de um intelectual do séc. XX, e pela de uma princesa do Mónaco dos nossos dias? (Toda, também atendendo ao título desta crónica, mas poupo o leitor à restante argumentação!)
Todavia, é evidente que como locais de manifestação de criatividade e de discussão de ideias, os blogues me tem proporcionado gratas surpresas, além de compensarem o progressivo desaparecimento, da imprensa escrita ou da vida pública, de tantas pessoas cuja opinião prezo, muitas vezes até para delas discordar (nestes casos, com a vantagem de me obrigarem a pensar nos fundamentos das minhas razões e convicções). E os blogues fazem hoje parte dessa neo-torre de babel que é a Internet, onde tanta informação se acumula possibilitando que quase todas as investigações sejam nela servidas, se soubermos fazê-las e não nos perdermos nas rampas que nos levam por vezes a parte nenhuma. Claro que também não sou insensível à democratização da expressão que eles representam, mas a certa altura como não ficar aturdido com a cacofonia opinativa, a floresta declarativa, já para não falar da facilidade crítica ou mesmo da cobardia acusativa que por lá se encontram?
Logo, prefiro as memórias ou então as crónicas bem pensadas. O acto de escrever para si próprio, se tem por um lado um carácter mais autêntico porque pro domo, beneficia por outro lado do filtro do tempo, chegando normalmente aos olhos de terceiros numa realidade temporal que não a da sua concepção. Quando dado à estampa, tem uma moldura histórica que realça o seu conteúdo, permitindo evidenciar o que nele existe de intemporal e de humano. Montaigne, Saint-Simon, a Princesa Palatina, Boswell, o Príncipe de Ligne, Chateaubriand, Madame de Boigne e os memorialistas saídos da Revolução Francesa, ou mais perto de nós, Gide, Thomas Mann, Ernst Jünger, Victor Klemperer, são de ontem mas permanecem de hoje pela actualidade da análise e pela vivacidade da escrita. Isto para não falar de Jorge de Sena ou de Ruben A. e do seu “O Mundo à minha procura”, para mim uma fonte inesgotável de prazer intelectual. Quanto ao escrever para o próximo, há maior tragédia do que o imediatismo das crónicas diárias? Por muito bom que seja o cronista, há sempre alturas em que tudo se emaranha, opinião e escrita tornam-se auto-indulgentes, o enfado e a obrigação acabam por transparecer nas palavras. Basta subir um degrau e pensar na crónica semanal que já tudo se começa a clarificar, a ganhar consistência, beneficiando da distância que ajuda a objectivar (pensemos por exemplo nos textos de José Cutileiro no Expresso, sempre informados, sempre inteligentes, sempre…pensados). E por aí por diante. É claro que o tempo não é só por si uma poção mágica, e por grande escultor que seja, na feliz imagem da senhora de Crayencour (Yourcenar no mundo das letras), não concede qualidade a quem não a tem, nem tira palas a quem as quer usar. Mas ajuda e favorece o pensar na escrita, e é único a separar o trigo do joio, o que é bom.
Enfim, como o Papa Bento XVI recomendou recentemente, na carta pastoral dirigida à sua Diocese de Roma, que o jejum quaresmal fosse este ano mediático – o que quer dizer contenção na recepção de informação: menos televisão, menos internet, menos telemóvel, tudo o que ocupa o nosso espaço interior e a nossa atenção – diria que, à tendência natural para o parco consumo de blogues, acrescento neste tempo pascal a penitência, diminuindo aquele um pouco mais. Que mo perdoe O Insecto, que me convidou para assinalar um aniversário e leva com esta reflexão de presente!
André Dourado, ex-Assessor Cultural do Primeiro-Ministro Durão Barroso, escreve na Revista OBSCENA (e é tio da Maria)
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