quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Porta dos Fundos - a polémica



[Secção pensamentos soltos, um pouco mais longos que o tema assim pede] Fui ver o especial de Natal da "Porta dos Fundos”. Afinal, além dos abaixo-assinados e ameaças de crime público, atiraram “cocktails molotov” na sede de produção. Calma. Vou repetir: atiraram “cocktails molotov” na sede de produção. Já li sobre o tema, mas para escrever fui ver o que despontou tal raiva e ódio. Inevitavelmente recordei o dia das mortes no Charlie Hebdo. Estava em Paris. Nessa noite passei pela Republique e sentia-se a dor contra a religião aumentar. Depois participei em muitas das manifestações pelo fim da violência. Significa que aceitava ou aceito que vale tudo no humor ou na vida? Não. Significa que não compactuo com qualquer tipo de violência seja em nome ou seja em defesa de Deus. Assim, vamos por partes:

Considero-me uma pessoa com humor e, na verdade, nem um momento tive vontade de rir durante o “especial de Natal”. Quando se conhece um pouco mais a fundo o sentido das Escrituras, da Religião, é preciso saber fazer humor com as mesmas. É possível, porque Deus de todo que não tem falta de humor. Do bom humor, porque o há mau. Já me ri muito com alguns vídeos da Porta dos Fundos, alguns religiosos, mas desta vez achei demasiado básico. Senti-me ofendido na fé? Zero. Tão fora são as personagens que, tirando os nomes, em nada tocam as verdadeiras pessoas que querem representar. 

Quem já foi gozado, sabe bem o quanto de ignorância pode estar em quem goza. Claro que o gozo, o sarcasmo, a burla fazem muito mal. Faz em quem está mais frágil, fraco, e deixa-se influenciar por isso. Nalguns casos, porque precisamente não tem forças. Noutros, porque há medo ou “telhados de vidro” a serem desmascarados. Não sejamos, nós religiosos, ingénuos e puritanos: o péssimo uso e abuso da religião matou e mata tanto na dignidade, como literalmente. Sabemos bem: reacção gera reacção. 

Então que fazer? Curiosamente conhecer um mais da mensagem de Jesus, que agora estamos a celebrar o nascimento. A grande mensagem, a do Amor, pode ser interpretada desta forma: “cresce e conhece de tal maneira a humanidade que à reacção darás lugar à acção”. A acção, com base no Amor, é a de amar os inimigos e dar outra face, outra perspectiva. Poderá ser a de tomar consciência do porquê do gozo e do sarcasmo, ou seja, de que os que se dizem muito cristãos enrolaram-se com o poder, desejando anular tudo o que não seja segundo os seus padrões de verdade e de moral, sem se dar conta da brutalidade da hipocrisia que acontece em tantas situações da relação entre palavra e gesto. Isso dói muito mais, tanto consciente como inconscientemente, do que se imagina. Dar esta perspectiva é extremamente exigente, porque implica o reconhecimento de que cada um de nós necessita de conversão, de modo a escutar que há muito mal com aparência de bem no espiritual, piedoso, moralista. 


Se o “rasgar das vestiduras” da actualidade é compactuar com a violência, então o farisaísmo continua a latejar falta de fé. Deus tem “costas largas”. Se assim não fosse, não encarnaria, não anunciaria a exigência do amor aos inimigos, não morreria na cruz. Uma das grandes implicações da fé é a da reflexão com honestidade intelectual, moral, humana. Façamo-la como pessoas adultas. De certeza que muito mudará em todos nós. Continuação de boa celebração do Natal d’Aquele que veio dar outra perspectiva ao mundo.

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