terça-feira, 16 de agosto de 2016

(Re)descobrir a vivência cristã… em sacramento




Bin Yu

Texto publicado na edição Agosto/Setembro da revista Mensageiro do Apostolado da Oração

As palavras missa, eucaristia, sacramento, fé, catequese, etc., parecem estar cobertas de pó. Talvez por uma questão de linguagem ou, então, de mudança de “tempos culturais”, quer estas palavras quer o seu sentido têm vindo a ser muito conotados com enfadonho, seca, aborrecido, apenas se necessário ou quando dá jeito. Em parte, há razão de ser: afinal, a linguagem e os rituais religiosos – em especial para quem não os conhece – tornam-se fechados, incompreensíveis, podendo chegar ao aparente sem sentido. E aos poucos, ajuda a que cresça essa conotação e, em seguimento, o número dos “católicos não-praticantes”. Partindo da ideia de que “não-praticante” é quem, entre outras coisas, professa a fé católica, mas, tirando casamentos, baptizados e funerais, não tem por hábito ir à Missa, poderia perguntar o que levaria a que essas pessoas tenham-se afastado da prática religiosa. Daria um bom estudo, junto com outro sobre o “estar na Missa”. Afinal, acabam por se relacionar, nesse “o que é” e “como” praticar ou viver os sacramentos.

É tão estranho quando, também a partir da linguagem corporal, sente-se o mecanicismo em que se está lá porque “faz parte”, “sempre foi assim”, “lá me levanto e lá me sento”, “lá repito as fórmulas”. Nós, cristãos, somos chamados a ser autênticos animadores e não meros executores do ritual, que em vez de ser algo de vida vai-se esvaziando em ritualismo, resumindo-se num “fazer coisas”. O ritual bem vivido ajuda a que todas as pessoas se sintam participantes da celebração. Vivendo em ritualismo, a beleza da celebração perde-se, tornando-se artificial e mecânica. Não é fazer da celebração da Missa um espectáculo ou uma “festarola" para ser “fixe, moderno e atrair”: cai-se também no ridículo. Trata-se de ajudar a que se esteja lá plenamente a celebrar a vida de Cristo em comunidade. Às vezes basta começar por relaxar os ombros e respirar calmamente, permitindo trazer a vida, tal qual ela é, para a celebração. O que oferecemos como “fruto da terra, da vinha, e do trabalho humano” é, segundo a nossa fé, transformado em Cristo, que não é um executor, mas o animador por excelência. Essa nossa oferta é toda a vida, com as suas alegrias e esperanças, dores e angústias, para que Cristo possa dar-nos a graça que mais necessitamos para melhor vivermos a nossa relação com Deus e com quem nos envolve. Uma das grandes tentações é a de que apenas se vá à Missa em momentos pontuais e, quando se personaliza ainda mais, nos que estão carregados de dores e angústias, descurando os de felicidade. Todos, mas todos os momentos são de celebrar com Cristo. A Missa é encontro que nos permite participar da vida de Deus. 

Há uns anos, numa sessão de Formação Humana e Espiritual, pedi ajuda ao grupo. Sem filtros, ou seja, a partir das entranhas, pedi-lhes que me falassem de Deus e da Igreja. O que achavam, o que sentiam, se lhes era indiferente, fossem crentes ou não. Houve respostas muito interessantes. Uma delas, pela forma tão sincera com que foi dita, deu-me bastante que pensar: “Deixei de ir à Missa quando já não me obrigavam. Acho que nessa altura até tinha deixado de acreditar em Deus. Um dia, depois de muito tempo sem ir, entrei numa Igreja. A Missa estava a começar. Decidi ficar todo o tempo. Fui comungar e vivi a presença de Deus. Tive vontade de voltar.” Perguntei-lhe se tinha consciência do que é que a fez voltar. Respondeu: “Não sei. Mas, senti que foi a partir de uma decisão minha e não de uma imposição.”

Participar na eucaristia dominical e de dias santos de guarda faz parte dos deveres de quem vive a fé católica. Mais uma vez, surge a sensação estranha de o encontro com Deus se dar a partir da obrigação. Até há, mais para a norte do país, a expressão da “desobriga”, quando se cumpre o que há a cumprir ao nível religioso. É certo que Deus manda-nos viver a proximidade com Ele em forma celebrativa, nos sacramentos, e relacional, nas obras de misericórdia. No entanto, esse mandamento não deve ser visto de forma paternalista e castradora, onde se dá o cumprimento por medo, infantilizando a relação com Ele. 

A fé necessita ser alimentada, além da oração, por uma boa formação, em catequese de adultos ou cursos teológicos, pela leitura, participação comunitária, acompanhamento espiritual, para que possamos crescer, à semelhança de Jesus, “em sabedoria e em graça”. Ao fazer este caminho de crescimento pessoal e espiritual, apercebemo-nos da importância da vida em, com e por Deus, que liberta-se da ideia ou sensação de obrigação penosa, para passar a ser uma necessidade de encontro com Ele, fonte de vida. Esse encontro, tal como sugere Santo Inácio de Loiola nos Exercícios Espirituais, aumenta o conhecimento interno que temos de Cristo, com o propósito de mais O amar, seguir e servir. É um caminho de fé desafiante. Quem tem o desejo de o fazer, vai percebendo a força da travessia, com implicações a todos os níveis, em especial de transformação do modo como se compreende o mistério da vida de Deus e, por reflexo, do Ser Humano. O cristianismo é a vivência, o relacionamento, não com uma doutrina ou um conjunto de regras, mas com a pessoa de Cristo, em comunidade, a Igreja. Tal como vamos aprendendo a nos relacionar em família, em amizade e nos vários grupos de que fazemos parte, naturalmente surgem deveres que, de algum modo, fazem aumentar os vínculos, o afecto e o sentido de pertença. 

Quando a fé em Cristo é mal compreendida, de modo mais ou menos inconsciente, põe-se em causa os deveres desse sentido de pertença ou, então, limita-se à superficialidade da sensação imediata: “sinto-me bem, vou; se não me é confortável, já não faz sentido ir” ou “estou a precisar, vou; se já estou bem, já não faz falta ir”. Quando a fé em Cristo é bem vivida, percebemos que, tal como aconteceu com os discípulos, podemos passar por questionamentos, revoltas, dúvidas, no entanto, sabemos que são passos na escalada espiritual. Há a recordar que a conversão também se dá a partir da nossa história, daquilo que somos. Não podendo mudar o passado, podemos aceitar e integrar o que cada um foi e é. Aí, consegue-se a força que nos agarra por dentro. À medida que o conhecimento interno de Cristo vai sendo cada vez mais presente na nossa vida, percebemos que Deus não pede o desencarnar do que fomos e de quem somos. Muito pelo contrário, convida a que cada qual seja o que é na sua máxima profundidade, entre luzes e sombras. No fundo, a coragem de sermos cada vez mais autênticos diante d’Ele. E tal é de se viver especialmente nos sacramentos da eucaristia e da reconciliação.

Mais do que uma prática, participar livremente nos sacramentos a partir da fé vivida, moldada e transformada por Deus, deixa de ser pela “desobriga”, mas segue os passos do desejo do encontro real com Cristo. No crescimento da relação, afastamo-nos do “sentir-superficial”, do simples apetecer, dando-se uma maior proximidade com o Senhor que nos quer fazer participantes da sua vida, para sermos, tal como Ele, vida para os outros.


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