Texto publicado na edição Agosto/Setembro da revista Mensageiro do Apostolado da Oração
É tão estranho quando, também a partir da linguagem corporal, sente-se o mecanicismo em que se está lá porque “faz parte”, “sempre foi assim”, “lá me levanto e lá me sento”, “lá repito as fórmulas”. Nós, cristãos, somos chamados a ser autênticos animadores e não meros executores do ritual, que em vez de ser algo de vida vai-se esvaziando em ritualismo, resumindo-se num “fazer coisas”. O ritual bem vivido ajuda a que todas as pessoas se sintam participantes da celebração. Vivendo em ritualismo, a beleza da celebração perde-se, tornando-se artificial e mecânica. Não é fazer da celebração da Missa um espectáculo ou uma “festarola" para ser “fixe, moderno e atrair”: cai-se também no ridículo. Trata-se de ajudar a que se esteja lá plenamente a celebrar a vida de Cristo em comunidade. Às vezes basta começar por relaxar os ombros e respirar calmamente, permitindo trazer a vida, tal qual ela é, para a celebração. O que oferecemos como “fruto da terra, da vinha, e do trabalho humano” é, segundo a nossa fé, transformado em Cristo, que não é um executor, mas o animador por excelência. Essa nossa oferta é toda a vida, com as suas alegrias e esperanças, dores e angústias, para que Cristo possa dar-nos a graça que mais necessitamos para melhor vivermos a nossa relação com Deus e com quem nos envolve. Uma das grandes tentações é a de que apenas se vá à Missa em momentos pontuais e, quando se personaliza ainda mais, nos que estão carregados de dores e angústias, descurando os de felicidade. Todos, mas todos os momentos são de celebrar com Cristo. A Missa é encontro que nos permite participar da vida de Deus.
Há uns anos, numa sessão de Formação Humana e Espiritual, pedi ajuda ao grupo. Sem filtros, ou seja, a partir das entranhas, pedi-lhes que me falassem de Deus e da Igreja. O que achavam, o que sentiam, se lhes era indiferente, fossem crentes ou não. Houve respostas muito interessantes. Uma delas, pela forma tão sincera com que foi dita, deu-me bastante que pensar: “Deixei de ir à Missa quando já não me obrigavam. Acho que nessa altura até tinha deixado de acreditar em Deus. Um dia, depois de muito tempo sem ir, entrei numa Igreja. A Missa estava a começar. Decidi ficar todo o tempo. Fui comungar e vivi a presença de Deus. Tive vontade de voltar.” Perguntei-lhe se tinha consciência do que é que a fez voltar. Respondeu: “Não sei. Mas, senti que foi a partir de uma decisão minha e não de uma imposição.”
Participar na eucaristia dominical e de dias santos de guarda faz parte dos deveres de quem vive a fé católica. Mais uma vez, surge a sensação estranha de o encontro com Deus se dar a partir da obrigação. Até há, mais para a norte do país, a expressão da “desobriga”, quando se cumpre o que há a cumprir ao nível religioso. É certo que Deus manda-nos viver a proximidade com Ele em forma celebrativa, nos sacramentos, e relacional, nas obras de misericórdia. No entanto, esse mandamento não deve ser visto de forma paternalista e castradora, onde se dá o cumprimento por medo, infantilizando a relação com Ele.
A fé necessita ser alimentada, além da oração, por uma boa formação, em catequese de adultos ou cursos teológicos, pela leitura, participação comunitária, acompanhamento espiritual, para que possamos crescer, à semelhança de Jesus, “em sabedoria e em graça”. Ao fazer este caminho de crescimento pessoal e espiritual, apercebemo-nos da importância da vida em, com e por Deus, que liberta-se da ideia ou sensação de obrigação penosa, para passar a ser uma necessidade de encontro com Ele, fonte de vida. Esse encontro, tal como sugere Santo Inácio de Loiola nos Exercícios Espirituais, aumenta o conhecimento interno que temos de Cristo, com o propósito de mais O amar, seguir e servir. É um caminho de fé desafiante. Quem tem o desejo de o fazer, vai percebendo a força da travessia, com implicações a todos os níveis, em especial de transformação do modo como se compreende o mistério da vida de Deus e, por reflexo, do Ser Humano. O cristianismo é a vivência, o relacionamento, não com uma doutrina ou um conjunto de regras, mas com a pessoa de Cristo, em comunidade, a Igreja. Tal como vamos aprendendo a nos relacionar em família, em amizade e nos vários grupos de que fazemos parte, naturalmente surgem deveres que, de algum modo, fazem aumentar os vínculos, o afecto e o sentido de pertença.
Quando a fé em Cristo é mal compreendida, de modo mais ou menos inconsciente, põe-se em causa os deveres desse sentido de pertença ou, então, limita-se à superficialidade da sensação imediata: “sinto-me bem, vou; se não me é confortável, já não faz sentido ir” ou “estou a precisar, vou; se já estou bem, já não faz falta ir”. Quando a fé em Cristo é bem vivida, percebemos que, tal como aconteceu com os discípulos, podemos passar por questionamentos, revoltas, dúvidas, no entanto, sabemos que são passos na escalada espiritual. Há a recordar que a conversão também se dá a partir da nossa história, daquilo que somos. Não podendo mudar o passado, podemos aceitar e integrar o que cada um foi e é. Aí, consegue-se a força que nos agarra por dentro. À medida que o conhecimento interno de Cristo vai sendo cada vez mais presente na nossa vida, percebemos que Deus não pede o desencarnar do que fomos e de quem somos. Muito pelo contrário, convida a que cada qual seja o que é na sua máxima profundidade, entre luzes e sombras. No fundo, a coragem de sermos cada vez mais autênticos diante d’Ele. E tal é de se viver especialmente nos sacramentos da eucaristia e da reconciliação.
Mais do que uma prática, participar livremente nos sacramentos a partir da fé vivida, moldada e transformada por Deus, deixa de ser pela “desobriga”, mas segue os passos do desejo do encontro real com Cristo. No crescimento da relação, afastamo-nos do “sentir-superficial”, do simples apetecer, dando-se uma maior proximidade com o Senhor que nos quer fazer participantes da sua vida, para sermos, tal como Ele, vida para os outros.
Sem comentários:
Enviar um comentário