segunda-feira, 17 de março de 2014

[Para além do bem e do mal]



Candy Caldwell


“Odeio-os!” Estava de cabeça baixa quando desabafou quase imperceptivelmente. Sentia-se também a vergonha, mas foi mais forte o outro sentimento. Todo o ambiente envolvente falava da família, dos amigos, em modo festivo. Apercebi-me que algo mais se passava. Convidei-o a sair daquele espaço. Fomos para outra sala. Depois de algum tempo a serenar o nervosismo, disse-lhe que não estava ali para julgar e que por vezes é preciso desabafar a mágoa sem o peso de ser bom ou mau. Percebia a tensão que lhe ia dentro. Às tantas, ainda em sussurro, mas com uma densidade impressionante, diz-me: “Paulo, odeio os meus pais!” Gela-me a espinha. Que dizer naquele momento? Respiro fundo, faço a pequena oração “Senhor, ajuda-me a dar vida!” e disse: “De onde te sai esse ódio? Pensa numa parte do teu corpo?” “Daqui”, pondo a mão na barriga. “De que cor é?” “Preto, como as marcas do meu corpo!” E levantando a camisa mostra-me as marcas do cinto e dos pontapés. [Ficámos mais de duas horas à conversa] Após estes meses todos, sei que está a ser acompanhado. Porque conto isto? Tenho para mim que o tempo de quaresma, de calendário ou de vida, é o tempo do grito, do desabafo, da busca da verdade das entranhas diante de Deus… sem se ficar na superficialidade do bom ou do mau. Sim, reconheço a minha luta contra o excesso de moralismo, como se a vida se reduzisse ao “super-ego” controlador e destruidor. Não, não significa um laxismo em que tudo se permite e vale. Significa o saber escutar o que está a ser verdadeiramente dito “para além do bem e do mal”, para ajudar a que o outro seja livre. Sim, sendo nós chamados também à liberdade, há muito caminho a fazer…

Sem comentários:

Enviar um comentário