Fregueses, peregrinações, insectos e outros enchidos
"Mas é mesmo à vontade do freguês?" perguntei eu. "Sim, escreve sobre o que te apetecer" disseram-me eles. Tramaram-me, é o que é. Grandes sacanas! Sei lá sobre o que é que vou escrever! Curiosamente, no exacto momento em que escrevi a palavra "escrever" ali atrás ainda não sabia. Passada essa, e outras, continuo na mesma… Mas adiante que o caminho faz-se caminhando, como bem sabe quem já peregrinou. E peregrino sinto-me eu, acabado de chegar a uma casa de acolhimento, a este albergue simpático, arejado e bem frequentado onde encontro dois velhos amigos.
Para dizer a verdade toda, um, o Pedro, enquadra-se na categoria dos velhíssimos amigos. Tão velha é a nossa amizade que até a herdámos dos nossos pais. A do Tiago é mais recente. Mas nem por isso pior. O João Mattos e Silva é amigo de amigos meus e comungamos das mesmas causas. Atrevo-me, por isso, a dizer-me seu amigo por afinidade(s). Não conheço os restantes membros da cooperativa mas tenho pena. E disponho-me a apagar depressa essa mancha que transforma em cadastro o meu curriculum.
Onde é que eu ia? Peregrinava. Pois.
E que ideia peregrina tiveram os meus amigos em convidar-me a passar por cá! Pensaram, talvez, que fosse tecer longas considerações acerca da política do nosso país e sobre o encefalograma plano que perpassa a oposição? Que maravilhasse os doutos espectadores com demoradas interpretações do presente momento da União Europeia? Que falasse dos Balcãs, da adesão da Turquia ou das eleições americanas, até? Coisas, assim, tipo, inteligentes.
Ou que, fazendo jus ao nome e recordando tempos que já lá vão, dissertasse sobre a importância cultural dos 20 melhores pasodobles da Banda de Alcochete, citando para o efeito a Ramalhal figura e mais uns quantos para compor o ramalhete? Afonso da Maia, quem sabe?
Lamento desapontar aqueles, se os houver e eu duvido, que esperaram por semelhantes maçadas. Não me apetece. Sinto-me de férias aqui. Gosto da vista. Do ambiente. E das pessoas. Não me aborreçam, está bem? Já me bastam os blogues em que me obrigo a escrever…
"Eh, não te estiques! Estar à vontade não é estar à vontadinha! Vê lá se fazes alguma coisa." dirão alguns com medo de que, no meio da baboseira, os despenteie, lhes estrague a mobília, arranque as sardinheiras dos canteiros e espante a clientela. Aquietai vossos corações, ó almas apoquentadas! Que me quedo em sossego qual Inês antes da acalmia definitiva induzida a mando de seu augusto ex-futuro-sogro.
Outros, inclementes, far-me-ão notar que se vim aqui para encher chouriços melhor fora que nem tivesse cá aparecido. E têm muita razão. Desconhecem ainda assim, as pobres almas, a importância anímica, económica e nutritiva do enchido nacional e, ao apoucá-lo, amesquinham inaceitavelmente boa parte, pelo menos um naco dos mais saborosos, da sua identidade.
Conheço um inglês que recusa terminantemente a hipótese de vir a ter um. Bilhete de identidade, que ele com chouriços não tem problemas desses. Desde que não tenham códigos de barras, claro está. Afirma ele que lá vem inscrito o número da besta e que se recusa a estar marcado. Há quem o julgue marado. Eu prefiro que seja ele ao whisky.
Em S. Martinho do Porto - lugar para onde eu vou não "fazer praia" todos os anos - há pelo menos um café em que o dono se recusa, isso sim, a mandar encher as garrafas com semelhante zurrapa! Para ser mais barato enche-as ele. Mais um caso de sucesso do empreendedorismo (que palavra execrável) nacional.
É complicado falar-lhes deles, no entanto. Dos chouriços. Aos bifes, quero dizer. "Sausage" serve-lhes para classificar tudo e isso, para nós, não explica nada. Uns básicos. Há uns tempos o idiota de um escriba lá dessas paragens - Rod Liddle de sua graça - atreveu-se a bramar que a nossa cozinha era, juntamente com a escocesa, das mas primitivas da Europa. Estava com dor de cotovelo de sonoridade Elgariana – Não me perguntem a que soam os cotovelos doridos, ok? Não me lixem. - depois de a malta mais uma vez os ter traumatizado futebolisticamente. Escrevi-lhe explicando que não recebia lições de sofisticação culinária de um povo cuja elaboração nesse campo se limitara à recapitulação das múltiplas utilizações possíveis da banha de porco. Nunca me respondeu. Fiquei triste.
Quem tinha uma opinião dúbia sobre as salsichas era o Bismarck. Dizia ele, quando não estava a organizar conferências ou a dar trepas no franceses, duas actividades igualmente meritórias, que "para se ter respeito às leis e às salsichas, é melhor não saber como elas são feitas". Ele também achava que "Nunca se mente tanto como antes das eleições, durante a guerra e depois da caça". É gajo para ter razão, o Otto. Está bem de ver que ele, tal como a irmã do Solnado, gostava de dizer coisas. Melhor que esses dois pândegos só o Pancho Villa que quando o despacharam à fogachada para o outro mundo pediu que dissessem que ele "tinha dito alguma coisa". O preguiçoso. Ali a agonizar, sem presença de espírito para pensar na posteridade. E depois admiram-se...
Agostinho da Silva escreveu que "Se fizeres, és. Se não fizeres, serias". Eu fiz. Está feito. O quê, não sei.
Gostei muito deste bocadinho. Um abraço a todos do
João Vacas
P.S.: Que raio de ideia foi essa de chamarem "animal invertebrado, de corpo articulado, dividido em cabeça, tórax e abdómen, provido de três pares de patas, que respira por traqueia e sofre metamorfoses; classe dos artrópodes; fig., pessoa desprezível, insignificante" a um blogue? Ele há cada maluco…
*João Vacas é jurista e co-autor dos blogs 31 da Armada