sexta-feira, 10 de novembro de 2006

Volver


"Volver" é um filme fantástico e, ao contrário de algumas opiniões que já ouvi, não acho que desiluda em relação à expectativa que Almodovar muito justamente nos criou.
É uma análise magistral do universo feminino, um tanto caricaturada, bem sei, mas por isso mesmo deixando patentes alguns traços que, se não forem exagerados, passam despercebidos. E, no entanto, são esses traços que dão personalidade e diferenciam o que temos à frente dos olhos.
Neste caso, a existência de uma rede de cumplicidades entre as mulheres, permanente, insensata, imprevisível mas afinal indispensável ao aparente fluir do dia a dia das suas protagonistas.
Essa ligação fortissima não conhece classes sociais, não pergunta, mas exige contrapartida: agora, tu, depois eu, se for preciso... A cena da camioneta, em que Raimunda e a prostituta vão "desembaraçar-se" do cadáver do marido da primeira, é notável. Nenhuma fala do assunto, não é preciso, a outra faz-lhe notar que sabe mas não diz o quê. Fica a dívida, isso sabem as duas. Como a cena do restaurante do vizinho (ausente, claro, ignorante do que se passa, claro, incapaz de tirar proveito do que tinha, claro), a casa cheia, e a amiga: "Ai, Raimunda, tu com os teus decotes e eu com os meus chopitos, o que não podemos fazer..."
É, como disse, uma cumplicidade e não uma solidariedade. Esta exige outros laços, os afectivos, que a primeira dispensa. Esta encontramo-la na relação mães-filhas, amigas, irmãs, ainda assim com os mesmos "tiques" que se revelam nas relações com as outras.
No meio desta teia, os homens são (quase) dispensáveis ou melhor, desaparecem, são "eliminados" pela forte personalidade das suas companheiras e deixam-se anular (morrer) ou simplesmente somem-se sem que se lhes conheça ou interesse o destino. Ainda assim, quando aparecem, simulam autoridade e domínio, que elas fingem reconhecer com uma passividade que é enganosa mas que a eles lhes serve e parece suficiente.
A afirmação feminina é sublinhada pela imagem do sapato, cheio de lacinhos e saltos altos, ainda assim pisando com firmeza o chão que pisa.
Volver desenha com humor e inteligência uma espécie de mundo subliminar, que é mantido discretamente porque isso faz parte da sua força, uma espécie de segredo bem guardado que todos conhecem mas de que ninguém fala. Porque há equilíbrios que só assim subsitem, porque a sobrevivência de quem está na sombra assim o obriga, porque, porque, porque...

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