domingo, 22 de março de 2020

Sinos a tocar Páscoa



[Secção pensamentos soltos no 3.º dia de Emergência Nacional, depois de ver fotografias de pessoas a passear amontoadas como se nada estivesse a acontecer no Mundo, nem tivessem já morrido dezenas de milhares de pessoas e outras milhares estivessem a fazer os impossíveis nos hospitais] Da minha janela de onde tenho visto o silêncio nos últimos dias escuto o trovejar. Aproxima-se o grito do céu. A chuva junta-se às minhas lágrimas na oração. Sim, como padre também choro. São muitos sinos a dobrar pela humanidade, por mortos que não são números, não podem ser, nunca poderão sê-lo, mas de rostos que ficaram por abraçar. Choro por quem não tem quem chore por eles, jogados em valas comuns. Choro com quem chora à distância, na tristeza de não realizar qualquer cerimónia de adeus. É duro. Muito duro. Os números amontoam-se, os nomes identificam e ao som de tempestade falam-nos de nova existência, de novo modo de viver: ficar em casa, apenas saindo por um bem maior e comum. 

Talvez já se vomite esta expressão. Vamo-la embelezando na tentativa de iluminar tempos sombrios. E bem, sim. Em especial para as crianças. Mas, nós adultos, temos de nos rodear de sensatez e realidade. Apesar da transformação a acontecer, os tempos não são de brincadeiras. Por todo o significado a dar à liberdade, não quero mais amontoados números que justifiquem continuar em estado de guerra. Cada um de nós é soldado a decidir ficar, por mais que custe, por maior a exigência, em casa. 


Há medo. Há angústia. Há saudade. Há dor. Há possibilidade de cada pessoa começar a pensar verdadeira e profundamente em si e nos outros. Despontam muita perguntas de existência, sobre o presente e sobre o futuro. A fé ajuda-me a serenar o coração desde a confiança em Deus que nos quer adultos. Ser adulto na fé é saber atravessar as trevas pelo nosso pé com a responsabilidade pedida, na liberdade que todos queremos. É tempo de trevas e… duras. Cabe-nos a nós ser luz, sem enganos e falsas fezadas, sem desvalorizar a morte, tendo gestos concretos, responsáveis e adultos, contribuindo para que os sinos toquem a celebrar Páscoa.

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