Reuters/Francis Mascarenhas
[Secção pensamentos soltos em dia da Santíssima Trindade] Já lá vão uns bons anos desde uma conversa simples sobre pintura. Uma amiga comentava-me como as primeiras aulas estavam a mudar a sua perspectiva de visão da realidade:
- Hoje vamos pintar nuvens, disse o professor.
- Vai ser preciso muito branco, comentou alguém com humor.
- Para não haver abuso do branco, vamos lá fora e olhar as nuvens. Observem, com calma.
- Paulo, sempre vi nuvens na minha vida, mas naquela tarde, ainda mais a acontecer o pôr-do-sol, tudo mudou. Impressionante a quantidade de cores e tons numa nuvem. O mesmo se passa connosco próprios e com os outros. Impressiona a diversidade.
Esta conversa, além da vezes que olho as nuvens, volta à memória enquanto leio “Longe da árvore - Pais, filhos e a busca da identidade” de Andrew Solomon. Ainda estou nas primeiras cem páginas das mais de mil. No entanto, a crueza da investigação sobre a realidade da diferença (deficiência, surdez, filhos de violação, prodígios, esquizofrenia, anões, autismo, síndrome de Down, transgénero, etc.) abre desde logo tantas perspectivas no pensamento. São muitas as fronteiras entre o que se vê como doença, como aceitação e integração. Os combates internos e externos, tanto de pais, como de filhos… ou de cada um de nós, ante a diferença, seja ela qual for, são imensos. É isso, impressiona a diversidade de cores na nuvem, tal como impressiona a diversidade do que somos enquanto seres humanos.
Os ecos do livro vêm-me à oração. Agitando o ruído das vezes que não quero nem aceito a diferença do outro, apercebo-me do subtil igualitarismo que remanesce em mim.
É aqui que entra a beleza da Santíssima Trindade. Ainda a semana passada, em Pentecostes, perguntava-me: “como é que Deus ama cada pessoa?” Não é duvidar do Seu amor e da possibilidade, mas saber como é que esse amor acontece. N’Ele mesmo há diversidade em Amor único. Isto pode ser demasiado abstracto, mas quando entramos na complexidade humana só pode haver deslumbramento nesse amor. Ainda assim, é difícil: por esta luta constante em querer que as nuvens ou a humanidade sejam num igualitarismo que assusta. E facilmente se julga, eu julgo, mais as pessoas, que as acções, atitudes e comportamentos, na subtileza do não gostar do feitio até ao gozo, burla, acusação de aberração, desejando a sua não-existência.
Acredito claramente que nos podemos aproximar desse amar de Deus a cada pessoa. É caminho árduo, exigente e profundamente libertador. Recordando as palavras de S. Paulo na leitura para este dia, em que “tribulação produz a constância, a constância a virtude sólida, a virtude sólida a esperança”, esse caminho é o da vida. Afinal, continua S. Paulo, “a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.” Em passos de ajuda, há para mim coisas fundamentais: o silêncio, a libertação dos auto-enganos, muito amor próprio, levando à cada vez maior abertura de coração em, no que me é possível, pôr-me no lugar do outro… e amar, simplesmente amar como Deus ama.
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