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Na fotografia de ontem, partilhei o primeiro parágrafo da homilia. Depois de ter rezado na bonita Missa da Noite de Natal por todos os que por aqui me acompanham, partilho hoje o resto. Continuemos a celebrar a força deste Mistério da Encarnação de Deus.
Ao longo das semanas de Advento, nesse tempo de deixar crescer a esperança, fomos acompanhados pelos distintos modos de viver o Silêncio. Há o silêncio cortante, que nos impede de falar. No entanto, o especial silêncio de surpresa diante deste mistério que hoje contemplamos, permite-nos escutar, afastados de ruídos perturbadores, a profunda comunicação de Deus, já não do exterior, mas desde as entranhas da humanidade. Ano após ano, somos convidados a contemplar o condensado de histórias e vidas misteriosamente presentes no nascimento que mudou o curso da Humanidade: Deus torna-se frágil, Deus cresce, Deus observa com olhos de criança, Deus aperta as mãos de Maria e de José, com a delicadeza de quem descobre a ternura da maternidade e da paternidade. O Menino Deus vive a humanidade em pleno.
Será que acreditamos nisto?
A inquietação na busca de Deus, permite derrubar ídolos e encontrar o Príncipe da Paz, envolto em panos numa manjedoura. O presépio, se olharmos bem, é, à semelhança da cruz, escandaloso. O presépio baralha a forma como encaramos Deus. Não nasce num palácio no centro da localidade, mas num lugar afastado na periferia. Não nasce num trono, mas numa gruta, num estábulo. Não são os ilustres que o reconhecem, mas os pastores, esses que, apesar de considerados ignorantes e excluídos, sabem ler os sinais dos tempos, em vozes de anjo que lhes fazem brotar a alegria da força da Vida. À semelhança de Zacarias, de Maria e de José, os pastores são convidados a afastar-se do medo.
Detenho-me nesta questão do medo. Na actualidade, o medo tem-nos paralisado. Com tanta informação ou desinformação, o medo parece que ganha terreno no mundo e no concreto das nossas vidas. As sombras e a escuridão de que o outro pode fazer mal, tem provocado fechamentos e fundamentalismos, impedindo o face-a-face em diálogo que afirma a igual dignidade em cada ser humano. Por isso, somos convidados a voltarmo-nos para a Luz, permitindo que possa brilhar em cada recanto das nossas entranhas… fazendo com o que o medonho desconhecido, se torne conhecido e, assim, possível de ser afastado.
Mais uma vez pergunto: será que, apesar de todos os textos que nos são dados, acreditamos que Deus nasce para nos divinizar?
Tomáš Halík, no livro “Paciência com Deus”, escreve “há que repetir uma e outra vez: a fé não é uma questão de problemas, mas de mistério, por isso nunca devemos abandonar o caminho da busca e da interrogação.”
Pensando na Palavra que assume Carne, vemos que a linguagem ou as palavras ganham corpo na sua interpretação. Assim, recorro à ajuda a outros idiomas.
“Connaître” significa, em francês, “Conhecer”. Acho piada ao facto de, traduzindo à letra, que o conhecimento seja entendido como um “co-nascimento”, um “nascer-com”. Vai daí que isto de sermos humanos, ou pelo menos irmos tentando sê-lo, implica um renascer aliado à sabedoria de vida. Somos estimulados à busca, à interrogação que não nos deixe ficar estagnados no já adquirido. A nova experiência de vida ou o novo conhecimento permitem um renascer da nossa visão em relação ao mundo, a nós próprios e a Deus. Essa visão poderá ser mais positiva ou mais negativa conforme o modo como lidamos com a experiência. Podemos ficar agarrados à dor, ao contentamento, à doença ou à alegria, sem fazer o caminho que leva à profundidade e ao passo maior de encontro comigo mesmo, com o meu próximo e com Deus.
Tenho para mim que o tempo de Natal, por ser tempo de reencontro, é perfeito para se dar a oportunidade de re-nascer. Daí que o que mais caracteriza este tempo é a esperança. A esperança de que, como nos diz o profeta Isaías, “algo novo já está a acontecer” (Is 43,19), mostrando-nos liberdade diante do medo.
Ainda assim, olhando para os tempos que correm, com os inúmeros conflitos, ou para a vida de cada pessoa com sérias dificuldades, é mais difícil perceber esse acontecimento novo. Não brinquemos… a vida não se reduz a contos-de-fadas com “finais felizes” a todo momento. No entanto, se formos capazes de interrogar, de fazer o caminho de fé neste Menino que nasceu, cresceu, morreu e ressuscitou, chegaremos a viver com Ele o grande momento de plena felicidade, nesse grande encontro ao qual somos chamados.
“Ok, pe. Paulo, mas volta lá aos ‘momentos em que é difícil perceber a tal esperança’”. Pois, não se pode ficar na espiritualidade desencarnada, ou mesmo numa “fezada” afastada de dores, ainda mais, quando somos bombardeados de notícias cheias de desumanidade. Então, que caminho quero fazer? O do desespero ou o da esperança? Sozinho ou acompanhado? De estagnação ou de conversão? Às vezes, com a liberdade que nos é dada como filhos de Deus, é preciso vomitar as dores das entranhas que impedem ver o futuro, abrindo o coração para que as feridas possam ser saradas e, assim, fazer o caminho da busca. Nós, cada um de nós que aqui estamos nesta assembleia, todas as pessoas que conhecemos, não somos “coisa pouca”. Somos criados e amados por Deus… e livres para ir ao fundo da humanidade., sendo tal, algo de grandioso. Muitos poderemos entender esse ser amados de forma distinta, contudo, seja com maior, menor ou nenhuma crença em Deus, somos atravessados por fé, por esperança e por caridade e aí somos convidados em cada dia da vida a libertar o que oprime para dar mais um passo em direcção ao mistério da Vida.
Neste presente, nesta noite, neste hoje, carregados de história, cada um de nós está a viver algo concreto: alguma crise (a qual há que respeitar ao máximo), uma alegria imensa, uma dor (seja qual for, que torna o Natal mais triste), ou a passar por uma fase que leva a que o Natal seja mais um dia no calendário, podendo estar aqui a cumprir a “desobriga”. No entanto, também há a possibilidade de estar viver o sentido do Natal com grande intensidade, com o brilho no olhar, no coração, com fortíssimo sentimento de esperança.
Seja qual for a situação, temos de SER. Como que olhar o espelho e agradecer por se ser como se é. Nisto, não haja vergonha ou receio de chorar, ou de rir à gargalhada, de comer o doce que há muito não se come, de abraçar a pessoa que mais gosta (e na sua ausência, pensar nela e abraçá-la nesse mesmo pensamento), de rezar, de agradecer muito e de prometer que vai viver intensamente o novo ano, mesmo com os receios, as dúvidas, a crise, deixando que a luz da Esperança, ténue ou forte, esteja sempre acesa. E assim, não tornar a vida como simples vida, mas como desejo de caminho, de força para uma mudança, ou de contribuição para tudo o que permita o “nascer de novo”. E não se espere por limites de vida, como doenças ou crises sociais ou políticas, para reconhecer a força do encontro. Podemos dar presentes, mas, mais que tudo, sejamos presente, no tempo e no espaço, para mim, para o outro e para Deus. Por exemplo, se ajudámos alguém nos dias que antecederam o Natal, talvez essa(s) mesma(s) pessoa(s) continue(m) a necessitar de ajuda... há que continuar a ajudar. Se algum de nós precisou de ajuda (material, afectiva, espiritual), talvez continuemos a necessitar dela depois do dia de Natal... não tenhamos nem medo, nem vergonha de continuar a pedi-la.
Será que acreditamos mesmo no Natal? Espero que, tal como Maria que guardava tudo no seu coração, acreditemos que em cada Natal, em cada nascimento, somos chamados à Vida, ao encontro com o Menino Deus com a totalidade do que somos. Ele é Jesus, Deus connosco, dando-nos oportunidade de curar feridas, pessoais ou relacionais, permitindo a leitura renovada da história. Tudo na simplicidade do quotidiano, nas lutas pela justiça e verdade, na criatividade, no estudo, na possibilidade de avançar para mudanças, conversões, de vida, contribuindo para que os nossos corações sejam cada vez mais humanos e, assim, à semelhança do Menino Deus, mais divinos. Amén.
O Cristianismo é fantástico, fabuloso, ... É Mistério sempre a desvendar Obrigada
ResponderEliminarAbraço forte!! :)
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