Alexandros Avramidis/Reuters
[Inicialmente publicado na edição de Julho 2016 da Revista da Misericórdia - Santo Tirso]
Pessoas no Mundo
Milhares vivem refugiadas
Facilmente a poesia pode aparecer no quotidiano. A densidade das palavras abrem para sentimentos, recordações, acontecimentos, em frescura primaveril presente nos versos. Como que se se refugiassem entre a subtileza de estrofes que encantam e até cantam. Esse quotidiano até pode estar afastado de outras histórias que nos chegam através de notícias, interpostas por um ecrã ou folha de jornal. Eles lá, nós cá, sem bem saber que dizer, fazer ou pensar. As terras estão longe e eles trazem-nas tão perto. As águas do Mediterrâneo revelam rostos fugidos de confronto, guerra, morte. Novos ares surgem, com muitas perguntas de todos os lados. Quem são? Humanos em busca de vida, com nomes e histórias concretos. No entanto, há um adjectivo que mais os tem acompanhado: refugiados.
Desde há três anos que acompanho de perto pessoas refugiadas pelos mais diversos motivos, desde a perseguição política, passando pela religiosa, cultural ou sexual, culminando na social, onde a guerra arrasta milhares e milhares em fuga. Durante a minha formação como jesuíta, passei por Paris. Na comunidade onde estive, integrada no projecto Welcome da JRS (serviço jesuíta aos refugiados), viviam connosco pessoas refugiadas. Com o crescer da confiança, partilhavam as suas histórias. Entre os porquês e os modos de fuga, ia sabendo de famílias, umas assassinadas e outras sem qualquer possibilidade de contactar pelo medo de represálias. Uma vez, ao jantar, falava com o M. sobre o dia. Contava-me como pouco a pouco ia aprendendo o francês:
- Às vezes custa, não é? Sobretudo a relação entre a fonética e a escrita.
- Sim, e os temas de estudo.
- Como assim?
- Temas como “a casa”, por exemplo. Faz pensar a família.
- Tens conseguido falar com alguém da tua família?
- Não sei nada deles há meses. É preferível que eu desapareça para que eles vivam, ou mantenham a vida possível.
Nas conversas, a emoção mostrava que os sentimentos atravessam toda a humanidade. Nas diferenças no modo de expressar, o coração revela que o amor, o desejo de viver, a vontade de abraçar quem nos é querido, brotam da essência do ser humano. O P. Adolfo Nicolás, Padre Geral dos Jesuítas, comentava numa conferência sobre o drama humanitário das pessoas refugiadas: "Temos que aprender com os refugiados. Perderam tudo, mas não a sua humanidade. Talvez sejamos nós que temos de aprender isso mesmo, a ser mais humanos”.
A humanidade tem a tal poesia do sentir. Da poesia até se pode passar à oração. Foi o que me aconteceu depois de ter escutado todo o relato de onde pode ir o mais anti-poético, nesse negrume de maldade humana, tecida em gestos de tortura. Nessa noite, depois da escuta, senti-me um profundo ingrato. Na oração agradeci, agradeci, agradeci e agradeci. Do pormenor do cheiro a amaciador dos lençóis (ridículo, quase), ao facto de estar vivo. Agradeci a fé e o que ela faz comigo e de a vida, ou a conversão, ou sei lá, me ajudar a ser alguém em quem confiar. Agradeci o poder saborear o silêncio sem ter pesadelos. Agradeci o poder fazer uma crítica sem a ameaça da tortura e da morte. Agradeci o não ter medo, nem vergonha, de pedir abraços quando deles preciso.
A relação transforma. A empatia faz com as histórias se entrelacem, alterando o pensar. São rostos que dialogam, modificando a reflexão, nessa empatia em que a dor e a paz são recebidas mutuamente, em mãos que se apertam. Um dos refugiados com quem costumava conversar veio contar-me uma boa novidade: após mais de um ano a tentar ter cartão de cidadania temporária, este finalmente chegou. A partir dali já podia tratar do processo para que a mulher também pudesse vir. Não a vê pessoalmente há mais de três anos. Foi obrigado a fugir do país pela guerra, por ser jornalista e ter denunciado casos de corrupção e abuso de poder. Outro que viveu a tortura de perto… e de longe, ao se ver obrigado a fugir, deixando a família, a terra, sem saber se poderá voltar. Emocionado e com um grande sorriso, depois de contar a novidade, disse: “Paulo, chegou em tempo de Páscoa. Na minha pouca fé, apercebo-me um bocadinho do que é a ressurreição.” Não consegui dizer nada em resposta, para além do forte abraço que partilhámos.
Passado uns tempos comenta: “A minha mulher está quase a chegar!” Os olhos brilhavam com uma ternura impressionante. Havia o tremer de lábios e de palavras em dizê-lo, afinal são mais de três anos de separação forçada. O Poder, em especial político, insiste em fazer mal. “Já preparaste o reencontro?” Respondeu-me: “Nem sei. Passa-me tanto pela cabeça e pelo coração. Vou levar um ramo de flores, como ela gosta. Depois, só queremos ficar abraçados.” Tempo depois, o S. telefona-me e vai lá a casa. Deu-se encontro entre nós. Não vinha sozinho. A mulher acompanhava-o. Depois de grande batalha burocrática, tinha chegado há dois meses. Pouco-a-pouco instalam-se nesse reencontro, ainda com medo com o que se pode passar com os que lá ficam. Mesmo vivendo este fantasma, toda a conversa foi à volta da esperança… e nada forçada, pelo contrário, transparecia no rosto. Que abraço bom demos todos.
Torna-se claro que penso muito na humanidade. Talvez seja das palavras que me acompanha muito frequentemente em léxico. Não a quero gastar com o uso, tornando-a quase banal. Simplesmente quero enaltecer o profundo sentido do que é ser humano, também concebido em cultura que cruza a humanidade condicionando o modo de pensar e de viver. É difícil, para não dizer impossível, alcançar a pura neutralidade. Questões de crenças tocam todos os âmbitos. Ser humano é ser crente. E não vale a pena fugir disto. Os tipos de crenças é que podem variar: do desportivo ao religioso, sem esquecer o político, elas pairam na vida de cada um. Somos cultura, somos crença… e somos relação, que nos ajuda a perceber a riqueza da humanidade na sua diversidade. Pelo que já escrevi, marca-me muito a chegada de tanta gente, como cada um de nós, por mar, atravessando arames farpados, de culturas diferentes. Apenas buscam viver… nem é viver melhor, apenas viver. Ficar-se neutro é impossível, já não o é optar entre o medo ou a confiança na altura de falar no auxílio a todas estas pessoas. Continuo a acreditar que, para além das crenças todas, possa crescer a de um mundo melhor. Para que tal aconteça, passa por acolher, e não expulsar, em especial quem quer, depois de tanto sofrimento, simplesmente viver.
E a vida, como se vê, reveste-se de poesia. Tanto fala de amor, de beleza, como também grita pela justiça e misericórdia por aqueles de longe que estão aqui perto. “Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar”, disse-nos Sophia de Mello Breyner. Os rostos deles são os nossos.
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