domingo, 13 de novembro de 2011

O risco da profundidade


Snow Lovers de Ernst Haas

A minha professora de Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia) dizia-nos com bastante frequência para não nos ficarmos pela  leitura superficial dos textos. Há que tentar buscar a profundidade do que está escrito. Alguns relatos podem parecer ingénuos, outros simplesmente poéticos, alguns agressivos (sobretudo no Antigo Testamento), alguns espirituais ou, então, legalistas, no entanto, lidos na profundidade que lhes é pedida, podem revelar muito mais do que essas categorias em que poderão ser rapidamente catalogados. 
Vendo a vida também como narração, como história que se vai escrevendo à medida dos acontecimentos diários, podemos recorrer a esta imagem: vê-la como simples passar do tempo, onde as marcas são registos que "já lá vão" e o eu acaba por viver o simples ser do momento. Poderia dizer, o viver do famoso carpe diem, tantas vezes aludido. É certo que o aqui e o agora são o momento e o espaço do encontro entre o “quem sou” e a relação que se pode estabelecer com os outros, contudo, se são um aqui e agora que não vivem o fundamento da história, do ser, podem correr o perigo do superficial efémero. Quando isto acontece, rapidamente pode levar ao categorizar a situação, o acontecimento e até mesmo alguém de forma, diria, injusta. 
Este fim-de-semana estive no primeiro encontro de um tempo especial, o chamado Tempo Arrupe, dedicado à preparação para o sacerdócio. Numa das conversas, Toño García, o orientador destes encontros, na sua impressionante sabedoria de vida, da Companhia de Jesus e da Igreja, comentava que na comunicação pode haver, pelo menos, três tipos de escuta: a blindada, a ideológica e a disponível para a mudança. A blindada é aquela que “falares ou não falares, dá-me no mesmo”. A ideológica, quase próxima à blindada, é a que mais se aproxima, por exemplo, da classe política, ou seja, mesmo que o outro esteja a dizer algo acertado, o ouvido filtra apenas o que é contra a sua ideologia, levando a uma constante não aceitação do trabalho ou projecto que se pode vir a fazer em comum. Claro está que a “disponível para a mudança” é a escuta que vive o passo do diálogo: o que se está a dizer pode provocar mudanças em quem escuta. E para que isto aconteça há a exigência de não se ficar por uma escuta superficial, mas ir ao fundo do que está a ser dito, sem um julgamento imediato... ou seja, sem a mediação da reflexão sobre as palavras proferidas.
Assim, a profundidade mais do que um risco é um arriscar. No caso bíblico, em ir mais além do texto permitindo um conhecimento não só do sentido histórico do que foi escrito, como também das implicações que pode provocar em quem o lê, independentemente da crença que se possa ter. Tendo implicações em quem lê, inevitavelmente entra pela vida, provocando um novo olhar sobre a realidade, seja ela pessoal ou comunitária. Se há um novo olhar, então o meio envolvente não se fica pelo simples ruído ou sons lançados ao vazio, liberta palavras que guardam algo mais do que letras, levando à descoberta de histórias encarnadas em pessoas que também sonham, à sua medida, com um mundo melhor.

1 comentário: