Saiu de casa com a certeza de que não voltaria. Não sabia bem se era o último dia da sua vida ou se era exactamente o primeiro de todo o resto. Sentia apenas que o fim de uma época tinha chegado e que a sua existência iria mudar radicalmente daí para a frente.
Tinha 23 anos protegidos pela asfixiante presença da mãe que se recusava continuamente a perceber que o seu filho tinha crescido. Continuava a ir esperá-lo ao emprego, como tinha esperado o toque de saída no infantário, na escola primária, de sucessivas em sucessivas humilhações até à universidade.
O pai tinha saído de casa poucos anos depois dele ter nascido e esta sombra marcaria para sempre a sua relação com a mãe, uma mulher obcecada com a ideia do abandono. As razões da fuga do seu pai eram para si um mistério. Quando se tocava no assunto, nas raras vezes em que tinha conseguido romper a barreira de silêncio, todos baixavam os olhos com vergonha, ou com receio. A mãe tinha criado uma lenda à volta deste desaparecimento. Dizia a todos que o seu marido tinha sido mais uma vítima da ditadura, sem perceber que as datas não eram sequer coincidentes, ou se calhar compreendendo bem a mentira em que se enredara para poder continuar a viver. Talvez se recusasse a aceitar que o único homem com quem se deitara tinha saído de casa por sua causa, por causa do seu comportamento possessivo. O filho pensava nas hipóteses: o pai tinha ido embora depois de perceber que a mulher com quem tinha casado não lhe despertava o melhor que tinha dentro de si. Ou porque a sua vida comportava limites mais vastos do que aquele triste quotidiano lhe estabelecia.
Nuno ia já ao fundo da rua (chamava-se Nuno este filho) quando se apercebeu que não sabia o que iria fazer, para onde iria ou o que queria para si. Era domingo e tirando um ou outro transeunte distraído, as ruas estavam praticamente desertas na sua calma de fim de semana. Caminhava vagarosamente, sentindo a cada passo o peso de uma decisão que iria decerto acabar com a felicidade artificial que a sua mãe tinha criado para os dois.
Enquanto se afastava de casa pensava, orgulhoso, como tinha sido fácil a sua fuga. "Vou comprar pão", disse, sabendo que se lhe faltasse a coragem poderia sempre regressar com um saco de carcaças da Padaria Mimosa que era mesmo ali na esquina. Não acreditava que fosse capaz de ultrapassar essa fronteira.
Quando passou à porta da padaria o seu coração batia a um ritmo descontrolado. Por momentos achou que algo ia explodir no seu peito, que iria ter um colapso e ficar estendido ali mesmo. Parou um pouco e encostou-se à parede, branco, ofegante e a insultar-se pela sua fraqueza. Resolveu entrar e comprar o pão, saindo a correr sem sequer levar o troco o que suscitou a desconfiança da mulher do padeiro que nunca tinha visto aquelas atitudes numa pessoa que sempre lhe parecera calma. Se lhe pedissem para descrever o Nuno diria que era uma daquelas pessoas que fica à espera que o mundo gire para dar um passo. "Uma mosca-morta!"
Entrou em casa batendo com a porta e depois de atirar o pão para a mesa da cozinha trancou-se no quarto com lágrimas de raiva nos olhos, saboreando a sensação de liberdade que lhe percorrera o corpo quando decidira fugir. Mas falhara. Uma vez mais falhara. E quando a mãe lhe bateu à porta para saber o que se passava, recompôs-se, respondendo a frase de sempre: "sim mãezinha?"
Tinha 23 anos protegidos pela asfixiante presença da mãe que se recusava continuamente a perceber que o seu filho tinha crescido. Continuava a ir esperá-lo ao emprego, como tinha esperado o toque de saída no infantário, na escola primária, de sucessivas em sucessivas humilhações até à universidade.
O pai tinha saído de casa poucos anos depois dele ter nascido e esta sombra marcaria para sempre a sua relação com a mãe, uma mulher obcecada com a ideia do abandono. As razões da fuga do seu pai eram para si um mistério. Quando se tocava no assunto, nas raras vezes em que tinha conseguido romper a barreira de silêncio, todos baixavam os olhos com vergonha, ou com receio. A mãe tinha criado uma lenda à volta deste desaparecimento. Dizia a todos que o seu marido tinha sido mais uma vítima da ditadura, sem perceber que as datas não eram sequer coincidentes, ou se calhar compreendendo bem a mentira em que se enredara para poder continuar a viver. Talvez se recusasse a aceitar que o único homem com quem se deitara tinha saído de casa por sua causa, por causa do seu comportamento possessivo. O filho pensava nas hipóteses: o pai tinha ido embora depois de perceber que a mulher com quem tinha casado não lhe despertava o melhor que tinha dentro de si. Ou porque a sua vida comportava limites mais vastos do que aquele triste quotidiano lhe estabelecia.
Nuno ia já ao fundo da rua (chamava-se Nuno este filho) quando se apercebeu que não sabia o que iria fazer, para onde iria ou o que queria para si. Era domingo e tirando um ou outro transeunte distraído, as ruas estavam praticamente desertas na sua calma de fim de semana. Caminhava vagarosamente, sentindo a cada passo o peso de uma decisão que iria decerto acabar com a felicidade artificial que a sua mãe tinha criado para os dois.
Enquanto se afastava de casa pensava, orgulhoso, como tinha sido fácil a sua fuga. "Vou comprar pão", disse, sabendo que se lhe faltasse a coragem poderia sempre regressar com um saco de carcaças da Padaria Mimosa que era mesmo ali na esquina. Não acreditava que fosse capaz de ultrapassar essa fronteira.
Quando passou à porta da padaria o seu coração batia a um ritmo descontrolado. Por momentos achou que algo ia explodir no seu peito, que iria ter um colapso e ficar estendido ali mesmo. Parou um pouco e encostou-se à parede, branco, ofegante e a insultar-se pela sua fraqueza. Resolveu entrar e comprar o pão, saindo a correr sem sequer levar o troco o que suscitou a desconfiança da mulher do padeiro que nunca tinha visto aquelas atitudes numa pessoa que sempre lhe parecera calma. Se lhe pedissem para descrever o Nuno diria que era uma daquelas pessoas que fica à espera que o mundo gire para dar um passo. "Uma mosca-morta!"
Entrou em casa batendo com a porta e depois de atirar o pão para a mesa da cozinha trancou-se no quarto com lágrimas de raiva nos olhos, saboreando a sensação de liberdade que lhe percorrera o corpo quando decidira fugir. Mas falhara. Uma vez mais falhara. E quando a mãe lhe bateu à porta para saber o que se passava, recompôs-se, respondendo a frase de sempre: "sim mãezinha?"
frouxo.
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