sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Lendo os outros...


"Sou um católico fundamentalista mortinho por apedrejar a Fernanda Cância mas, merda!, não encontro passagem alguma no Deuteronómio que o justifique.

Não sou nada, Nanda, estou a brincar, não sinto mais vontade de apedrejá-la do que ao Manuel Luís Goucha ou aos relatos de futebol de domingo à tarde. Inclusive, quando li a sua peça no DN sobre a mulher apedrejada no Sudão, dei comigo a concordar ipsis verbis, e como não, com tudo o que a menina lá dizia. Ai, Nanda, o problema da minha amiga é que, sempre que diz duas coisas certas, pimba, entusiasma-se, pisa no prego e espeta-se na primeira curva. E a culpa é sempre dos malvados dos católicos. Suponho que a menina foi maltratada numa escola de freiras, daquelas com ar de agentes da Gestapo e grandes bigodes, dos filmes, que as reais não existem, que a obrigariam a recitar o Credo, credo, de joelhos sobre as lajes frias do convento. Mas, que diabo, não insista, que parece mal. Estamos no século XXI, Nanda. Os católicos são o bombo da festa dos media. Os bispos já não falam com sotaque de Sernancelhe, só o Jorge Coelho, e denunciam os abusos do capitalismo. As contas do Santuário de Fátima são publicadas e as joelhadas desaconselhadas no recinto. Os padres anónimos da província fundam e mantêm IPSS que permitem cuidar dos esquecidos do mundo, abrilhantando as estatísticas de camas do governo. Os erros do passado, como a Nanda bem diz, são objecto de pedido de desculpas do Papa. Os desvios para a pedofilia de padres e bispos que não aguentam o peso do celibato e pecam gravemente são investigados pela hierarquia, afastando-se os pastores das ovelhas. E sobretudo, nem o mais humilde pastor de uma aldeia recôndita de Trás-os-Montes se lembraria de fazer interpretações literais da Bíblia. Está lá escrito que Deus promete aniquilar sanguinariamente os inimigos do povo judeu, sim, e os nossos predecessores monoteístas assim o faziam, mas ninguém se lembra hoje de interpretar aquilo à letra, com excepção do coronel do «Jubiabá», salvo erro, do Jorge Amado, que consultava o Antigo Testamento em busca de justificação divina para cilindrar o coronel adjacente. Com excepção do coronel, e da menina.
Deixe-se disso. Aceite lá o facto de estarmos do outro lado da barricada em questões de vida ou de morte, como o aborto, frontalmente, sem hipocrisias. Mas meta a mão na consciência, que não é preciso ser crente para o fazer, e reconheça no seu íntimo que a má fé, o insulto gratuito, o golpezinho baixo nas múltiplas tribunas de que têm o quase exclusivo, vem hoje em dia mais da parte do seu lado e de pessoas como a Nanda, que frequentemente mandam a seriedade intelectual às urtigas em nome duma auto-vitimização que precisa da Igreja como papão, num impulso freudiano de afirmação pela negação.
Nanda, meta uma coisa na cabeça. Com excepção duns meninos da Opus Dei que eu confesso não ter muita certeza de serem católicos, a malta aqui já não é o que era. Sobretudo, não temos poder. O que, bem vistas as coisas, está de acordo com o que nos manda o Filho do Patrão.
E olhe, para acabar, porque eu sou como a Nanda, quando digo umas coisas de jeito, tenho logo que estragar tudo, deixe-me dar-lhe um conselho que reputará de paternalista. Leia o Daniel Oliveira. Está nos meus antípodas, como imagina, mas pensa nas coisas, não destila ódio, e respeita as convicções dos outros, mesmo quando as contesta".

Jorge Ferreira Lima, in: nem tanto ao mar...

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