segunda-feira, 2 de junho de 2008

Lendo os outros

"Fausto

Todos os indivíduos têm em si inúmeras potencialidades. Se o velho camponês tivesse emigrado em jovem para uma grande cidade teria podido ser empresário, a rapariga destruída pela droga poderia ter-se tornado uma mãe serena, o famoso cientista um grande músico. Fazemos escolhas em cada etapa da vida e decidimos encarnar um determinado papel, tornar-nos uma determinada pessoa. E temos de decidir, ou nem sequer saberemos quem somos.

Contudo, seja qual for o caminho que escolhermos, o tumulto dos possíveis continua a agitar-se no mais íntimo da nossa alma. O Fausto de Goethe não só quer ser jovem, como também quer viver muitas vidas: torna-se um líder , casa com Elena e passa por um turbilhão de experiências. Na vida quotidiana, há quem satisfaça este desejo de multiplicidade aceitando novos desafios, quem faça continuamente viagens, quem tenha aventuras eróticas com amantes ou apenas participando nas experiências dos outros através de romances, de filmes, de notícias policiais, dos debates e dos mexericos da televisão. Todos os seres humanos são atormentados pelo desejo contraditório de serem eles próprios e, ao mesmo tempo, de serem diferentes.

Existe uma tensão contínua entre o ser e o tornar-se. Ora prevalece o desejo de estabilidade, o prazer de viver com as pessoas que se conhece, com hábitos e regras seguras, ora prevalece o desejo da novidade, da mudança, de outras vidas. Quando prevalece o ser, quando estamos empenhados em reforçar a nossa identidade, olhamos com desconfiança para todos aqueles que escolheram a via da aventura e do excesso. Contudo, quando impomos a nós próprios ou nos impõem um esquema demasiado rígido, a agitação daquilo que podíamos ter sido faz com que sintamos a vida quotidiana como uma prisão. E queremos abrir as janelas, atraídos pela confusão desordenada da existência, fascinados pelas suas múltiplas e assombrosas formas.

Para além de um certo limite, a tensão leva à ruptura. É o que acontece a quem troca um emprego seguro pelo risco de ser empresário, que abraça a vida política, que assume uma conversão religiosa, a quem se apaixona. E, quanto mais rígida a couraça imposta pela autodisciplina, tanto mais a ruptura pode ser explosiva e perigosa. Todos devemos escolher e ser rigorosos. Mas temos que saber aceitar a nossa complexidade, respeitar a diversidade e permanecer abertos ao mundo.
"
.

Sem comentários:

Enviar um comentário