quinta-feira, 13 de março de 2008

O elementar quotidiano

«Dia após dia, trabalhas, trabalhas e nada dizes, porque nada tens para dizer. Trabalhas, os outros também, mas não falas. Dia após dia. Não falas. Trabalhas. Não falas, quero dizer, não falas de qualquer assunto que não esteja relacionado com trabalho, porque nada tens para dizer. Nada tens para dizer porque sentes que tudo o que é dito é artificial. Dia após dia. Recebes elogios: “Muito bem, essa foi bem pensada, bons miolos”. Trabalhas, não falas, recebes elogios. Pensas que … pensas que … estás a contribuir para algo bom. Julgas que és alguém com uma missão. Pensas não estás sozinho. Jogo de equipa, puxas pelos outros, partilhas as tuas ideias. Sabes que és ouvido. Sabes que tens bons miolos. Mas … mas, não falas, porque nada tens a dizer. O jogo do Benfica não te interessa, as obras no viaduto de Alcântara tampouco. Não sabes fingir interesse pela banalidade. Falas sobre trabalho. Sobre trabalho. Apenas trabalho, boas ideais, o rapaz pensa bem. E começas a perceber que algo não bate certo. Começas a perceber que a tua missão não é igual à dos outros. Começas a perceber que estás a ser usado. Começas a perceber que nunca houve vontade de concretizar uma única palavra do que te disseram. Começas a perceber que todos os dias que não falaste na transferência do Simão Sabrosa, nos golos do Liedson, no acidente do camião cisterna do dia anterior, estavas a preparar o teu fim. Começas a perceber que o importante não é apenas ter boas ideias. Começas a perceber que muito do que pensas não deve ser dito. Começas a perceber que o importante é … que o importante é repugnante. As tuas ideias são aplicadas mas tu és enxotado. És um estorvo. Já não interessas. Nunca interessaste. Todos se afastam de ti como se fosses portador da doença mais mortal que a natureza criou. És um estorvo, és substituído por miúdos que dizem “numbro”, “dezenas de milhares”, contam pelos dedos, soletram o que lêem, tem um riso de teatro de revista, tratam-te com uma enorme indiferença. Sentes uma enorme revolta por tudo isso. E um dia acordas e pensas… pensas…para quê? Porquê?
Respiras fundo e sabes que tens de tomar uma decisão. Respiras fundo, mordes os lábios, e atiras-te para pelos dias adentro. Dia após dia?»
By Pedro Morais Correia daqui: http://depoisdalinha.blogspot.com/

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