segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Vida

Se me pedissem para, numa palavra, descrever a Índia não conseguiria encontrar outra que não fosse "gente". Há quatro anos que andava a preparar-me para o dia em que aterraria no aeroporto de Delhi pelo que já sabia que dificilmente me surpreenderia com os cheiros ou com a sujidade. E assim foi.

Delhi tem 18 milhões de pessoas e isso percebe-se num ápice. Passam à nossa frente, ao lado, atrás, à nossa volta, num ritmo constante, alucinante, frenético. Carros, motas, bicicletas, vacas, burros, gente, gente, gente. São olhos negros que nos fixam com avidez e despudoradamente. Não somos ninguém ali. Nunca uma cidade me fez sentir tão pequeno e tão perdido. Por mais que me dissessem o contrário, não existe em Delhi qualquer hipótese de orientação. Porque não há orientação possível naquele caos urbanístico e naquele trânsito suicida.

E o resto é a cor, a festa, a alegria e os sorrisos no meio da miséria. São os pedintes, com olhares treinados desde a infância para suscitar a compaixão. São os templos aos deuses (milhares, parece), as árvores sagradas, os macacos sagrados, as pedras (?) sagradas, além das vacas, é claro, tudo sagrado num constante e eterno agradecimento pela vida.

São as lojas e os bazares das mil e uma curiosidades. São as pacheminas, as caxemiras, as sedas de tantas cores quanto a nossa imaginação consiga vislumbrar. São os saris, bordados a ouro numa criatividade que raia a loucura. São as pratas lisas, trabalhadas, limpas, sujas, brilhantes. São as pedras preciosas, as jóias, os diamantes. São as madeiras, os mármores, os tapetes, um imenso, louco, infindável rol de coisas que apetece comprar e é também a vertigem de não conseguir comprar nada perante tamanha oferta. São os hotéis de luxo, as lojas de luxo, os restaurantes de luxo. É o gin tónico ao fim da tarde e o medo de pedir bebidas com gelo.

É a espiritualidade. A simplicidade do sorriso fácil. A certeza de que o sol nasce no dia seguinte. As pessoas que dormem ao sol na relva das rotundas. As pessoas que dormem ao relento porque não têm casa. Os que se arrastam pelas ruas porque não têm o que fazer, não têm o que comer, não têm onde ir. É a vida a pulsar arrebatadamente com a morte ali ao lado. São os cães nas ruas, as gralhas negras nos céus, os lixos acumulados no chão das avenidas ao lado de tantas vidas descartadas e descartáveis. É o passado e o futuro.

E depois, é Goa que não é a Índia. É chegar num dia de manhã e sentir no ar (ainda que seja sem razão) que se chega a casa, a um património emocional português, a um lugar em que a palavra saudade faz tanto sentido quanto num bairro de Lisboa. É ver casas portuguesas e igrejas portuguesas e nomes portugueses e palavras portuguesas e pensar que se está em casa e depois perceber que não!

É rezar de joelhos ao pé das relíquias de São Francisco Xavier e perceber que a globalização de hoje é uma brincadeira de crianças comparada com a intrepidez dos que foram à frente falar de nós e da nossa fé. E é a fé deles que são tão diferentes mas acreditam como nós. São as oferendas a um santo que não é hindu. São as pedras seculares e as flores de imensas cores que apodrecem ao sol porque são para o Santo e ninguém lhes pode tocar. É o pouco de Portugal que ainda resta. É o Bairro das Fontaínhas, é a Dona Paula, é o mar, é o mar… E a vista do Palácio do Governador que só não alcança Portugal porque é muito longe!

E depois o nascer do sol, mesmo antes de vir embora, a mostrar-me que o céu afinal tem mais cores do que eu pensava. E que é uma festa! Foi isto a minha Índia. E foi muito mais. Porque não consigo falar de tudo o que vi, pelo menos por enquanto. Eu disse que “gente” é a palavra que melhor descreve a Índia? Não é verdade. “Vida” é o que me passa pela cabeça quando penso naquele país.

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