Carlo Allegri/Reuters
[A minha homilia nesta solenidade, que me é tão querida, do Corpo de Deus.]
Dos mais novos aos mais velhos, penso que todos já sentimos a força do corpo num abraço. Os mais novos com a beleza da vigorosidade, os mais velhos com a beleza da maturidade, encontraram-se em corpo neste gesto. Não vivemos sem corpo… nem Deus.
Imaginemos três momentos relacionados em três pontes: Natal, Páscoa e o dia de hoje, construindo um abraço entre eles. Não nos podíamos dizer cristãos se não houvesse Natal e Páscoa: o corpo de Deus que nasce e o corpo de Deus que vive a experiência da fragilidade, da morte e da ressureição. E, hoje, de modo especial, o Corpo de Deus que transcende na Eucaristia, onde, de modo celebrativo, somos convidados a participar da sua vida divina. Para muitos de nós já se tornou uma rotina, no entanto, para recordar a grandeza da celebração, volto à imagem inicial: a força do abraço.
O abraço é aquele momento em que se funde o que dá e o que recebe. Como no apertar de mãos, no entanto, no abraço tocam-se os corações. Não se dão abraços a qualquer pessoa, apenas a quem gostamos de partilhar algo, mesmo sendo um pouco da vida. Assim, o abraço densifica-se de uma beleza que transcende os sentidos, deixando que seja o coração quem fale naqueles breves segundos ou minutos em que não existe quem dá e quem recebe, mas a presença da gratuidade. Ambos, com esse gesto dizem “tive saudades tuas”, ou seja, “gosto muito de ti” em amizade, filiação ou amor.
Victor Poucel, um jesuíta teólogo, nos finais dos anos 40 do século passado, na obra Apologia do Corpo, escreveu: “Chegámos à convicção de que, entre todas as coisas da terra, o primeiro que haveria de expôr era a Mística do Corpo, já que é a mais desconhecida e mais próxima a nós. Vivemos com o nosso corpo e através do nosso corpo”.
O sentido da Mística aponta à relação com Aquele que encarnou e viveu plenamente a corporeidade humana. O ser humano, como corpo que é, abre-se também de modo corporal à transcendência. No entanto, apesar desta mística ser “próxima”, continua ainda a ser “desconhecida”. Reduzimos a relação com Deus a uma espiritualidade afastada do Corpo. Não me parece que seja o caminho a seguir. Vejamos, a partir das leituras.
Todas nos falam de comida. O pão, como o alimento mais simples. O vinho, como a bebida que nos ajuda a festejar e a alegrar [já sabemos o resultado quando há um copinho a mais… ;) ]. Aí temos, por um lado, Deus que, fazendo-se corpo em Jesus, participa da vida humana, por outro, que nos deixa a possibilidade de entrar na sua vida divina, de modo simples e festivo. No evangelho, depois de escutar o Senhor, de acompanhá-lo, as pessoas estavam cansadas. Os discípulos queriam mandá-las embora. No entanto, a subtileza de Jesus, o seu olhar atento pela humanidade, falou mais forte. “Que se sentem. Haverá comida.” Assim foi. Estamos a falar de uma multidão de 5 mil homens. Naquele tempo era assim que contavam. Eram muitos mais, pois há que juntar mulheres e crianças. Muita gente?!? Sem problema. Não há inquietação. As pessoas sabem partilhar. Óbvio que é um partilhar depois da benção, tornando a dádiva plenamente gratuita e alegre. Partilha-se com simplicidade o que se tem. E isso pode ser de algo material, em comida: fome é fome.
Mas, alargando a ideia de fome, quantas vezes não a há de afecto e de carinho? Separar em grupos de 50 ajudava a pôr as pessoas a partilhar, para além da comida, as vidas, os sonhos, os projectos, fazendo-se, assim, outro modo de ser corpo: comunidade. Uma comunidade que vive afectivamente. É outro modo de dar um abraço: partilhar a vida. Não tem que ver com “cusquice”… nada disso. Tem que ver com partilhar dores e alegrias, sonhos ou desafios, lágrimas ou gargalhadas, enquanto se come. Isto também é viver em comunidade.
Os que estamos aqui a celebrar, sejamos mais ou menos conhecidos, formamos este corpo que partilha a oração silenciosa e o alimento que é o próprio Deus. E isso deveria fazer-nos sair diferentes. Pode não ser com a vida mudada do avesso, mas com a certeza de que levamos vida divina dentro, para que cada um de nós seja também alimento para quem esteja à nossa volta, quem sabe com um simples e alegre abraço. Deixo o desafio: dar um abraço a uma pessoa de quem gostamos e fazer o milagre da multiplicação da simplicidade e da alegria. Deus chama-nos a isso, a dar a vida, a ser alimento com Ele e como Ele.
Antes de terminar, recordo um poema que me é muito querido, de Sophia de Mello Breyner:
Deus escreve direito por linhas tortas
E a vida não vive em linha recta
Em cada célula do homem estão inscritas
A cor dos olhos e a argúcia do olhar
O desenho dos ossos e o contorno da boca
Por isso te olhas ao espelho:
E no espelho te buscas para te reconhecer
Porém em cada célula desde o início
Foi inscrito o signo veemente da tua liberdade
Pois foste criado e tens de ser real
Por isso não percas nunca teu fervor mais austero
Tua exigência de ti e por entre
Espelhos deformantes e desastres e desvios
Nem um momento só podes perder
A linha musical do encantamento
Que é teu sol tua luz teu alimento.
Que a mística do corpo não continue desconhecida. Que a beleza do Corpo de Cristo possa ser continuamente redescoberta também na profundidade e beleza de um abraço, fazendo desse momento oração e encontro. E sobrará, tal como os pães e os peixes, muito mais vida, assim em abundância, para partilhar. Amén.