quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Passagens




Jonathan Yeap

“Deus está vazio 
de todas
as suas obras”

A humanidade tem necessidade de rituais de passagem, desse simbólico que torna o mesmo de sempre, como a passagem dos segundos nesta noite, em algo que aponta novidade. Com mais ou menos superstição, festa ou humor, a noite de hoje mais uma vez será vivida por muitos no anseio de bons desejos. É natural e expectável. Quer-se o bem. E que bem assim é. Como tenho este lado que estremece com o demasiado convencional, com as tradições fechadas sobre si, tenho pensado como é que se pode viver de forma diferente esse mesmo de sempre. Pode haver agradecimento do que passou no ano anterior, as pessoas que conhecemos e que foram mais ou menos importantes no caminho. Mas, parece-me, também se pode agradecer esse esvaziar, no fundo, o libertar do que nos oprime e impede ser, tanto ricos de autenticidade, como cada vez mais pobres de (auto-)enganos. Abre-se um novo ano, as estrelas cadentes relembram o imenso do universo. A oração ou a meditação relembram o infinito de nós chamados à mudança, à transformação, à conversão. E o mundo também mudará. Afinal…

“Nas mãos do oleiro
o universo descobre-se
inacabado” 


[Poemas de José Tolentino Mendonça]

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Leis




Jeremy Fox


Cada vez que há uma lei nova a criminalizar, fico a pensar na tristeza do acontecimento. É triste que tenha de se chegar ao ponto de criminalizar a ofensa ou a falta de respeito à dignidade do outro. Tenho lido tanto de júbilo, como de desdém ante a nova lei. Fico a pensar que a questão de fundo está mesmo na educação: que se dá (ou não), que se recebe (ou não) e que cada um pode viver por si (ou não). É triste o acontecimento de criminalizar. Entre outras coisas, é sinal que a base, o fundamento, da boa criação, entre intelecto e afecto, não funcionou, impedindo de distinguir a graça que pode levar ao encontro, da estupidez que pode magoar e muito.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Sobre o silêncio...




Joe Leung


Tenho andado a ler “O Livro do Silêncio” de Sara Maitland. Um grande ensaio a partir da experiência, ajudado por muita investigação, que a autora viveu na busca do silêncio. O silêncio é importante, necessário e arriscado. Não se trata apenas de experiências espirituais. Trata-se de ir em busca de quem se é. Quando há essa disposição, há risco. O risco [e a certeza] de encontrar o que não se gosta lá pelas entranhas e dar o passo de se amar isso mesmo. No fundo, de dar luz a cada recanto da nossa história, sentimentos, sem julgar. É tão difícil, tão duro, mas tão libertador. Nestes dias tenho-me apercebido que é fácil colocar culpa numa serie de coisas, para se fugir a este caminho. No entanto, quando me apercebo que é de enfrentar a escuridão, ir às raízes, entrar pela cave e dar luz, frescura, sentido, e aceitar e integrar o que lá está, vive-se liberdade e dá-se renascimento. Acho cada vez mais forte isto do Natal ser à noite. É luz que ilumina as noites a serem atravessadas. E há (re)nascer… a partir dos riscos do silêncio.

Busca de Infinito



[Secção outros tons] Apenas vislumbro o silêncio de quem busca a fonte. É o risco do mergulho ao profundo... nessa ânsia de infinito e caminho de conversão.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Homilia da Missa da Noite de Natal




Isabelle Bacher


Presidi pela primeira vez à Missa da Noite, a celebrar o Nascer de Deus. É a Noite em que levo nomes para o altar. Nomes de tanta gente com quem me cruzei e cruzo no caminho. Este ano acompanha-me o silêncio deste mistério. Pedi que apagassem todas as luzes da Igreja e, à luz de uma vela, “escrevi” uma carta ao Menino Deus. Partilho aqui a minha homilia. Que o Menino Deus continue a nascer nos nossos corações. Santo Natal.


Deus Menino, sussurro-te esta carta de noite, neste silêncio embalado pela luz de uma vela, recordando a estrela guia até ti. Acabas de nascer. Surge a força dos reflexos para despertar o corpo tão nosso. Descobres o movimento fora do ventre que te protegeu durante a formação de cada orgão, de cada membro, de cada choque. A pele sente os panos lavados com perfume novo, tocas a tua mãe que te acarinha desde o momento que a palavra se fez carne em ti. 

Sem te aperceberes, és mistério. Sem te aperceberes, a tua fragilidade amplia todos os que vivem a fragilidade, tanto de corpo, como de alma. Sem te aperceberes, és sinal de toda a transformação. Tu, nessa pequenez de recém-nascido, tornas concreto todo o amor de Deus. Já não é uma abstracção, é rosto que se forma e falará de tu a tu. Nos dias de hoje já sabemos que crescerás a observar o mundo que te rodeará, ouvirás as palavras de afecto, os gritos de dor, as orações de desespero e de agradecimento. Crescerás a revelar o teu Pai de forma renovada. Em cada passo teu haverá nascimento de paz, de compaixão, de misericórdia. Sentirás, tu mesmo, as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias do povo que já não é isolado daqui ou dali, mas se expandirá em cada coração humano. Sim, essa humanidade de que te fazes participante, para que cada um de nós faça parte da força da tua divindade. Sem te aperceberes, és misterio que recorda a plenitude da imagem e semelhança de Deus em cada coração humano, neste mundo concreto, neste aqui e neste agora. 

Neste sussurro, quero embalar-te com nomes. Os nomes de cada pessoa que compõe esta comunidade que aqui celebra a beleza e o mistério do teu nascimento. Nomes de todos os que trazemos no coração, que traduzem histórias, com muitos sentimentos, com perguntas e gritos atravessados de incompreensão e saudade, junto com lágrimas ou sorrisos de afecto, alegria e vida. Nesta noite somos nós os pastores, com os nossos medos. Medos impelidos a serem dissipados na alegria deste acontecimento, que traz luz a cada recanto humano para que todas as trevas sejam eliminadas e as sombras da morte sejam transformadas em vida. 

Nesta noite em que nasces, ainda que não tenhas consciência, a tua liberdade rebentará as correntes da injustiça. Os primeiros a te contemplarem são os rejeitados da sociedade. Eu mesmo rejeitei e rejeito tantos. Jesus, Yeshua, serás ouvido, compreendido, amado por muitos. Serás, tu mesmo, rejeitado, criticado, atacado, por outros tantos. És mistério. És fonte de vida, sim, nessa fragilidade de Menino que está pronto a crescer, alimentado de leite, de pão e mel, dando espaço à doçura e carinho por todo o que sofre, por todo o que é último. O teu nascer ilumina a esperança de quem foge da guerra, da opressão, da violência física e psicológica. A tua pequenez incomoda quem quer ser grande de poder e de orgulho. 

Oh, Jesus, Yeshua, neste silêncio habitado também pela nossa fé, muita ou pouca, débil ou forte, fazes com que o amor ganhe novo sentido. Assim, tu, Deus encarnado em Menino, transformas toda a nossa pele humana em traço divino. Olhando para ti, olho para as minhas mãos, para a minha pele, e vejo novas marcas. Não só Deus assume humanidade pela carne, como cada um de nós, aqui presente, cada ser humano, nesta mesma carne que somos, nos moldamos em Deus. Que responsabilidade nos dás, Jesus, Yeshua, sem que te apercebas agora como Menino recém-nascido. A partir deste teu nascer, a humanidade começa a transformar-se, sendo plena no dia em que te entregarás, te despojarás por cada um de nós, sem excepção, e ressuscitarás. 

Assim, se te deixamos nascer no nosso coração, tudo fica diferente. As nossas palavras, as nossas orações, os nossos gestos, ganharão a força da Tua vida, da Vida de Deus. Jesus, Yeshua, no mistério que és, ajuda-nos sempre a recordar, a viver, o mistério que somos em ti, para vivermos, sem medo, a alegria da misericórdia. Ajuda-nos a viver a autenticidade da nossa fragilidade e da nossa força, a perdermos a vergonha de te entregarmos tudo o que nos afasta do amor por nós mesmos e pelo próximo. 

Deus Menino, sussurro-te esta carta de noite, neste silêncio embalado pela luz de uma vela, recordando a estrela que nos guia até ti. Acabas de nascer… no coração de todos os que amam. Amén.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Brasas iluminadas




Nada mais para além das cores vivas das brasas. A senhora das castanhas ao ver-me a fotografar sorriu. "O senhor é poeta?" Respondi: "Tento ser. Apenas fiquei fascinado pela beleza desta cor." "Obrigada, vou estar mais atenta." Ofereceu-me uma castanha, sorrimos e desejámos feliz Natal, iluminados pelo fogo.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Convenções e diferença




Arghya Chaterjee


As convenções fazem parte do ser humano. Convencionar, delimitar, definir, regrar, têm de constar na linguagem quando se vive em sociedade. No entanto, abusar disto pode levar à formatação, que anula outro lado da humanidade: o único, o genuíno, o diferente, o especial. Ao longo dos tempos o social estratificou modos de ser, criando modelos rígidos que podem anular a riqueza também inerente a cada ser humano. Sim, a riqueza proveniente dessa unicidade também não pode ficar sem limites. Parece-me que educar, ou fazer caminho de crescimento, é ajudar a dar asas à riqueza de cada um, junto com pautas de diálogo, sobretudo no saber escutar para além do preconceito pessoal.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Mãos




Dolon Archi


[Secção outros tons] As mãos contam a história de quem amassou terra. Semente após semente, as horas foram sendo depositadas. Gretas surgiam entre sol e frio, nas estações que deixam cair folhas de fogo, dando espaço aos rebentos, vigorosos, apoiados em contos. Não há velhos, não há novos: a vida faz-se de memória agradecida e de sonhos.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Sobre reacções...




Dmitry Butuzov

[Secção desabafos] Nos últimos tempos tem-me incomodado e dado que pensar as reacções de muitos cristãos católicos a temas sensíveis, como o divórcio, situação de recasamento, homossexualidade, já que em nada tocam a misericórdia de quem se diz seguidor de Jesus Cristo. Tenho lido, ouvido e visto reacções de agressividade que mexem com a vida de muitas pessoas: que menos esperam, que podem estar sentadas no lugar ao lado da Missa, ser do mesmo grupo de reflexão sobre a fé ou bíblico. Quando os temas são sensíveis, há que tratá-los com sensibilidade e respeito pela pessoa, sem pôr tudo no mesmo saco. É impressionante as barbaridades que se dizem acompanhadas com o artifício retórico de “e eu até conheço ou tenho amigos que são divorciados, recasados, gays, etc.” Se se tem esses amigos e se o são realmente, cuidado com o que se escreve ou diz, pois com amigos assim… já se sabe. Custa-me ver que em nome da fé, perdão, duma pseudo-moral-que-se-diz-vir-da-fé, pode-se provocar tanto sofrimento desnecessário. Por vezes, apetece perguntar se a reacção visceral que se tem aos temas não será alguma situação mal resolvida, consigo ou com outros próximos, que não quer aceitar. Se assim é, não vai de rezas, mas de se fazer caminho de encontro consigo próprio… e nisso, Cristo foi muito claro (e duro, sobretudo com os fariseus e doutores da Lei). De vez em quando lá me recordo quem tem precedência na chegada ao Reino dos Céus.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Aula com alunos de 5.º ano




Bjorn Persson


Mal entro na sala, alguns põem logo as mãos em cima da mesa. Não, não é nenhum tipo de inspecção. Desde que comecei as aulas com eles que, antes da oração da amanhã [tenho aula ao primeiro tempo], resolvi dar-lhes dicas de meditação. Mãos apoiadas na mesa, costas direitas, pernas descruzadas, pés bem assentes no chão, olhos fechados. Inspira e expira… e cá vai disto. “Isto ajuda-vos?” É sabido que as crianças têm grande capacidade imaginativa. Um ou outro sorri, emociona-se, em todos vou percebendo a serenidade a acontecer. “Sim, stôr!”, “É diferente!”. Propus, por exemplo, que visualizassem alguém de quem gostam muito, depois alguém com têm mais dificuldades de relacionamento. Pedi que dessem um abraço a cada pessoa. Achei que iam fazê-lo em pensamento, quando tenho o meu momento de surpresa: todos, quase em coreografia, levantam os braços e, das duas vezes, dão um abraço. Depois, conversámos e as partilhas foram no ponto.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Advento




Justin Knott


Estamos em advento. É tempo de espera, em esperança, do nascimento de Jesus. Em cada ano voltamos a viver este mistério, tornando-se oportunidade para renovar ou transformar o encontro que cada qual tem com Deus. Para uns esse encontro é de certeza, de aconchego, de acolhimento, para outros, por muitos motivos que merecem respeito, é de silêncio, de confusão, de tristeza, de dúvidas ou até mesmo de negação. Atrevo-me a dizer que este tempo de espera tanto é nosso como é de Deus. Sim, Deus também espera, em esperança, pela nossa vinda até Ele, com imenso respeito pela nossa liberdade.