quinta-feira, 26 de novembro de 2009

"As Fontes" de Sophia

As fontes

Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes

Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um vôo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.

Sophia de Mello Breyner

Hoje recebi este poema por mensagem... E veio mesmo a calhar! Obrigado!

terça-feira, 3 de novembro de 2009

A não perder


“É da vida que costumamos fitar a morte. A arte faz o contrário: olha a vida a partir de uma morte invivível. Por isso, nos fascinam tanto os seus rostos e as máscaras com que se mostram, como se fossem sinais do impossível.
O texto escrito, aos onze anos, por Adília Lopes e que deu a estas obras a oportunidade de existirem é disto um augúrio. Aí, a morte é olhada da infância (“fiquei parada, contemplando o passarito, como se ele fosse um sinal vermelho que me impedisse de avançar”) e a infância é vista da morte (“jamais esperaria o Sol, as flores, o arco-íris, estava morto, enfim”).
Pedro Rapoula leu esse texto, voltou a lê-lo, e deu-lhe as imagens de uma alucinação serena. Pegou nas andorinhas de Rafael Bordalo Pinheiro e disse às suas mãos para descobrirem nelas um sentido oculto de crueldade.
Paula Rego afirmou-me um dia que, de todos os artistas portugueses, Bordalo Pinheiro é o mais capaz de lhe gerar encantamento e espanto. Quando fala dele a sua voz fica alta como os crimes dos seus quadros. Para isto ser como digo, é porque também ela adivinhou em Bordalo uma crueldade exacta e injusta como a da morte .
Eu olho estas aves de Rapoula, cercadas pelo vidro das suas caixas-sarcófagos, e já não consigo chamar-lhes andorinhas. A morte aproximou-se tanto delas, e aproximou-as tanto de nós, que elas deixaram de ser o que foram.
O Pedro Rapoula falou-me deste seu trabalho trocando a ligeira altivez do seu grupo humano por uma gravidade discreta que o universaliza. Eu sei que ele fica feliz (e só isso lhe bastaria) quando fixa os gestos que as suas mãos fazem para acrescentar as coisas de outras coisas – as que dão leveza ao peso e peso à leveza.
Dizer o nome da morte é falar do tempo e do seu extermínio. Mas o nosso tempo foge do tempo, num fuga veloz a que chama vida. Gosta de sustos falsos, fáceis e fúteis. Não gosta de medos fundos como o prego daquela noite de que um dia falou Cesariny: “ a noite como um prego a noite louca/ a noite com árvores na boca”.
Rapoula aponta aqui ao lugar em que o voo ágil das aves se cruza com o voo trôpego do tempo. Esta exposição dá a Saturno e à sua voracidade um corpo frágil (nada há mais frágil do que a beleza) e múltiplo (nada há mais bem dividido do que a morte). Na horizontalidade caída dos pássaros negros há um grito vertical que rege o seu sentido. Mas, chegado aqui, desvio-me, porque lembro o que afirmou Susan Sontag: “ Em vez de uma hermenêutica, nós precisamos de uma erótica da arte”.
Os antiquários são casas de tempo. Neles, há a sombra de uma luz maior do que essa que nos alegra quando a olhamos no fulgor frio das jóias, no reflexo fugidio dos cristais, no brilho liso das porcelanas. Não existe melhor lugar para dar a ver estes pássaros-vítimas do que um antiquário com a sua elegância melancólica e avara. Ninguém como Visconti disse “morte”, quando dizia “beleza”. Assim, não há mais viscontiana nem melhor companhia para esta exposição do que a de uma outra que se chama “Vanitas”, pois em face desta palavra estão as antiquísssimas caveiras que a usam para nos lembrarem a morte e o nosso conflito com ela.
Aqui, estes pássaros torturados acrescentam à melancolia do lugar a crueldade que lhe falta, sem desfazerem a elegância que lhe sobra. Por isso, é acertado que esta exposição se faça sob o nome de “Primavera”, pois esse é o tempo do ano em que tudo nasce para morrer.”
José Manuel dos Santos