quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Carta a um Amigo...



[Mara Mitchell, in olhares.com]


Caro M.!! O meu Grande Abraço!!


Já há uns tempos que estou para escrever... Mas como te ia dizendo pelo msn, foram mesmo uns dias bastante preenchidos. Hoje decidi, antes de ir ter com as minhas amigas leituras, ser o tempo, a hora, o momento. E aqui estou. Já nem vou escrever sobre a "tua" China. A tua última carta e o teu regresso foram muito claros. Mas ainda assim insisto no receber algo do que se lá passou. Obrigou-te a repensar na vida, no futuro, quer a nível profissional, quer pessoal. Eu acredito nas pequenas mudanças que a Vida nos proporciona. Sim, pode surgir a questão: para quê? Não tenho dúvidas para crescer, sempre, como ser humano. Estamos numa sociedade muito marcada por uma visão serviçal e materialista, então parece que tudo o que fazemos tem de ter algo produtivo... Talvez passe por uma das minhas lutas mostrar que não é a produção (anulando uma linha marxista) que faz de nós melhores ou piores, mas sim a riqueza com que vivemos a Vida, mesmo com os seus altos e baixos. Até mesmo com o sofrimento que algumas coisas nos proporcionam. Eu reconheço que sou algo utópico, mas a minha forte crença num mundo melhor tem-me permitido mudar a minha maneira de encarar o mundo, as pessoas, até mesmo a minha própria pessoa. Obviamente há coisas a que não me sujeito, mas, se elas acontecerem, tento vivê-las da melhor forma.

Claro está que passa por um encontro muito forte comigo. Com o que sou... Afinal, se Deus me chama, chama-me como sou, com a minha realidade. Claro que o meu sim vai impelir a uma mudança, conversada, partilhada. Passa pela oração, pelo silêncio, pelo simplesmente estar, pelo saborear a Palavra, e depois, deixar-me estar à escuta. Deus fala, não da forma humana, digamos assim, mas nos pormenores do dia-a-dia. Naquilo que chamo os milagres diários, que acontecem em cada segundo. Vou-me apercebendo, pensando, questionando, rezando... Deixar-me estar nesta relação que se vai adensando cada vez mais. Daí, respondendo de alguma forma à tua questão se me sinto completo e preenchido, dizer-te que sim, sinto-me completo, cheio, "alimentado" por um Amor tão forte que muitas vezes é difícil explicar. Se vou percebendo, nesta relação entre a razão e a fé, o quanto sou (somos todos) amado, então, a minha vida vai-se preenchendo com esse Amor. Claro que sofro, pois este amor vai implicar sofrimento, na medida em que vou-me deparando com as injustiças, com as falhas, no fundo um Amor que também traz consigo Paixão e morte. Há dias que é doloroso... De facto, não sou Cristo, vou sendo. Também tenho lutas, por vezes titânicas, comigo mesmo... Quando vejo que a minha vontade não é o melhor caminho... Mas apetece tanto... Claro está, e agora? Muito bem, não vou moralizar, como se fosse a pessoa mais asquerosa na face da terra. Tenho a graça de me ir conhecendo não só nas qualidades, mas também nos limites. Graças a Deus não sou perfeito! Isso ajuda-me a escutar os outros, e a ir compreendendo com alguma profundidade as fragilidades dos outros. De facto, nós precisamos uns dos outros, a auto-suficiência é um engano. A humildade passa por isso mesmo um reconhecer que preciso do Outro para ser quem sou.

Falas-me de situações dramáticas dentro da Igreja... Sabes, não me contas novidades. De facto, já tenho escutado muito sobre muito... E são essas escutas que me fazem reflectir sobre Deus, sobre Jesus, sobre quem é este Deus com quem me vou relacionado. Não fico nada admirado diante desta descrença social diante de Deus. As imagens d'Ele não são nada famosas. De tal maneira que a minha linha é mesmo da antropologia para a teologia. Explico-me. Hoje, quando alguém me pede para falar de Deus, ou da minha relação com Ele, falo antes de mais da Pessoa. Do que é ser pessoa. Explicando o que vou rezando, pensando sobre a Encarnação, este Mistério tão denso e bonito, vou tentando abrir este Deus que é pessoal em Jesus, com quem me posso relacionar num face-a-face. São séculos e séculos de fechamento do ser humano. Não faz sentido. Os primeiros padres afirmavam "A glória de Deus é o ser humano". Bolas, o que é que isto significa, será que vivemos isto intensamente? Não creio de todo... Por isso há tanto sofrimento desnecessário. Pessoas que vivendo uma proximidade com uma determinada realidade de igreja sentem-se afastadas... Como eu as compreendo. Apesar de não ter vivido algumas dessas realidades, se as tivesse vivido também eu me afastaria... Por isso digo, posso ser crente, mas também sou ateu. Há "deuses" nos quais não acredito.


Qual é o sentido da Encarnação? É a aproximação de Deus à Humanidade. A divindade que se enlaça na humanidade. Jesus esteve com todos, falou com todos. Foi apelidado de comerrão e beberrão, esteve sentado à mesa com publicanos e pecadores, prostitutas. Mas também com santas mulheres e santos homens. O Evangelho retrata apenas as passagens mais fortes da Sua Vida. Acredito que a relação com pessoas com grande santidade o influenciaram também, juntamente com os marginalizados. Ora, enquanto cristão não tenho de estar no mundo? De facto, não sou do mundo, na medida em que a minha realidade é mais ampla que a humanidade, já que vou fazendo parte da realidade divina, mas estou no mundo. Tenho de abraçá-lo, escutá-lo e até mesmo amá-lo. Tento que seja com todas as minhas forças, mas de vez em quando é difícil. O que é importante para perceber que não sou Deus, não sou o Salvador do mundo, sou sim, instrumento. Serei eu especial? Sou, mas não sou o único. Todos os somos aos Seus olhos. Reconheço que hoje em dia as coisas não estão fáceis, há dor, há sofrimentos, há confusão, que já vem de séculos e séculos de uma má mensagem. Mas foi a que aconteceu. E agora? Ficar-me-ei a lamuriar? Não, dar o meu sorriso e seguir em frente, mesmo a falar pelos cotovelos. Mesmo nos meus momentos mais tristes agarro-me à fé que tenho e entrego a Deus, tentando guiar-me por Ele.

Isto passa pelo exame de consciência, que como te dizia, mais do que ver ou contabilizar pecados (ai o nosso pensamento moralista), é o momento de dialogar com Ele agradecendo o dia, o que aconteceu, pedir luz para ver e depois ir vendo por onde Ele foi passando ao longo do dia (onde Ele foi falando, dando as respostas, como te falava lá mais acima), também ver onde pequei, ou seja onde me afastei dele (ficará para outra conversa a questão do pecado), e depois pedir-lhe perdão (mais forte no bom sentido, que o pedir desculpa) e ajuda para continuar a ser MAIS com Ele. De forma breve este é o caminho do Exame de Consciência que Sto Inácio nos propõe...

Obrigado por me dares os gritos... Aqui estou! Fico contente por poder, de alguma forma, contribuir para que possas abrir o teu coração, quer para ti, quer para Deus. Sabes, um dos meus desejos é que todos sejam felizes e não é andar aí aos pulinhos de forma infantil, é que se sintam, na sua individualidade, preenchidos tal como eu vou estando...

Meu querido Amigo, deixo-te aquele Abraço que conheces. Grande e apertado!! Com a minha oração, por ti!!
Estamos juntos... ;)

Paulo




4 comentários:

  1. Anónimo23:58

    É impossivel não esboçar um sorriso de cumplicidade com o que está escrito!

    Bom...muito bom!

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  2. Senti que esta carta também me era dirigida. Que Jesus, o que conviveu com homens santos e com pecadores,que acaraciou as crianças e fez delas exemplo da pureza de coração, falou pela sua voz, que infelizmente não é a voz mais comum da Igreja,muitas esquecida de que Jesus antes de mais é Amor.
    Que a sua voz nunca se cale, que a sua visão de Deus nunca se tolde e que nos vá dando, com ela, cada vez mais força para saibamos amar em cada pessoa Jesus e nele o Pai.Obrigado pela carta que também me dirigiu sem o poder adivinhar.

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  3. "O homem é uma grande pergunta que por dezenas de anos procura uma grande resposta..."

    Beijinhos!

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  4. Muito obrigado!

    bruna: :)

    jms, é das coisas que vou pedido a Deus... Coragem e discernimento, para falar. Quem Ama não guarda para si, tem de dar.

    Sónia... Identifico-me com essa definição de Ser Humano. Cada vez vou perdendo mais medo de questionar... Sei que, mesmo pequeninas, vou encontrando respostas. :)

    Beijinhos e Abraços!

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