quarta-feira, 20 de abril de 2022

Cansaços


Henrique Almeida


[Conversas soltas com a devida licença para partilhar] 

-É impressionante como tudo muda ante o limite. Achava que conseguia tudo, que tinha de mostrar todo o trabalho impecável. E ainda mais quando era o disponível para tudo. 

-Imagino a famosa dificuldade do não.

-E de que maneira, P. Paulo. Fica mal dizer não no trabalho. Parece que somos considerados menores. Tinha uma colega que definia as horas de trabalho. Eu ouvia os comentários de corredor: “é das que gosta de trabalhar pouco”, “belas vidas não fazer nada”, “deve viver dos rendimentos de alguém”.

-A facilidade com que se julga, sobretudo a partir de projecções dos próprios desejos.

-Mesmo. Confesso que a invejava. Mas eu não dizia não. Até ao esgotamento. Foi tão subtil, até todo o ser arrastar-me para o hospital em exaustão.

[Baixa a cabeça.]

-Porque baixa a cabeça enquanto recorda esse momento?

-Nem me tinha apercebido. [Silêncio] Na verdade, sinto vergonha por ter falhado.

-Consigo ou com o trabalho?

-O trabalho tornou-se o centro da minha vida.

-Como um ídolo?

-Como um ídolo que me pede mais e mais. 

-De quem tem verdadeiramente medo de defraudar com o não?

[Olha-me fixamente.]

-Todas as pessoas que apostaram e acreditaram em mim: pais, educadores, chefes. “Tu és o melhor da turma, logo tens de ser o melhor em tudo.” E quem diz turma, diz irmãos e equipa. Isso foi entrando e tinha de ser o melhor. Quase como que Deus a que todos acorriam e sabiam que tudo fazia. Era exasperante. 

-E agora? 

-Nestes tempos de silêncio, apercebo-me que tenho mesmo de mudar. Estava a morrer e, ironicamente, com profissionalismo.

-Quando pensa dizer sim a si? O não e o sim são faces da mesma moeda.

-Aprendi isso à força. E faz sentido libertar-me deste ídolo do trabalho. 

-É aqui que entra o discernimento. Não tem de deixar o trabalho, mas a vivê-lo de outra forma. Bem, e se fizer sentido, a mudar radicalmente.

-E os medos?

-Trabalham-se. Afinal, parafraseando Jesus, de que vale ganhar o mundo inteiro, ser o melhor, se perde a alma, a vida, o sentido. 

-Há tanto mais para descobrir. E é tão libertador poder fazê-lo sem julgamentos, sobretudo sem chegar a limites.

-Haja caminho de liberdade.


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