Leland Bobbé
O grande trabalho é combater os medos, as fobias, em especial as que se dirigem a pessoas. Deixemo-nos de hipocrisia, a maldade pode estar no coração de qualquer um(a), em qualquer grupo social, religioso, político. Por isso, o trabalho é de educar para humanizar… e não são “os outros”, começa por mim. Não interessa atiçar mais ódios, permitindo que uns se tornem mais justificados que outros. Interessa humanizar, pensando que as pessoas são pessoas, para além de características ou crenças. Tendo em conta os recentes acontecimentos em Orlando, lembrei-me deste encontro e conversa que tive há três anos, em Madrid.
Quando desço a Rua Fuencarral ou a Preciados (centro de Madrid), encontro quase sempre pessoas a pedir sócios ( = €) para ACNUR, Oxfam Internacional, Aldeas Infantiles SOS, Cruz Vermelha, Fundación Josep Carreras, etc. Normalmente, por uma questão de respeito, paro, pois grande parte das vezes aquelas pessoas são votadas ao desprezo de tanta gente. Infelizmente não posso ajudar, o qual explico, depois de dizer que, de alguma forma, também contribuo com a minha própria vida (directa ou indirectamente) em muitas situações que estas instituições também ajudam. Ontem voltei a parar. Desta vez a história é um pouco curiosa. Estavam 4 travestis a pedir para uma Associação de ajuda a pessoas com osteogénese imperfeita (também conhecida como doença de ossos de vidro). Com elas estavam duas raparigas que sofriam da doença. Enquanto descia, uma travesti abordou-me:
- Olá “guapo”! Tens um minuto?
- Sim.
Explicou o propósito da recolha de fundos, se queria ser sócio etc. e tal. Respondi-lhe que não poderia ajudar, pois não me iria fazer sócio da associação.
- És italiano?
- Não, sou português.
- Estás cá a trabalhar?
- Não, estudo.
- Posso saber o quê?
- Sim, claro. Estudo Teologia.
E com ar de muito espanto:
- Não me digas que vais ser padre?
-Sim, vou e já sou diácono.
A sua reacção facial mudou, como se tivesse saído uma máscara, mesmo por detrás de toda a maquilhagem. E já sem voz de festa:
- Não estás a gozar comigo, pois não?
- Porque haveria de o fazer?
- Hmmm, não é suposto uma pessoa como tu parar e falar, por exemplo, comigo. Não estava à espera.
Soltei uma gargalhada.
- Oh, mas... porque não? Porque és travesti? Oh... És uma pessoa, que neste momento está a trabalhar por uma causa e já está.
E desenvolveu-se ali uma conversa de meia dúzia de minutos. Percebi que era uma pessoa em busca da fé. E no final disse-me, ainda com a sua voz natural e de forma sentida:
- Obrigado por teres parado e me escutares.
- Espero que consigam uma boa recolha. Já costumo rezar pelas pessoas que sofrem, mas esta noite, de forma especial, rezarei pelas que sofrem desta doença de ossos de vidro.
- Posso pedir-te que rezes também por mim?
- Claro, com gosto. “¡Suerte!” Adeus.
E abana a cabeça, ajeitando os cabelos e voltando a “máscara”:
- Adeus “guapetón”... ai, desculpa a minha falta de respeito!
Deu uma gargalhada artística. Eu dei outra e segui caminho.
De facto, o possível título deste acontecimento é mesmo: “Actos dos Apóstolos 10, 34”, ou seja: “Pedro tomou a palavra: ‘Verdadeiramente compreendo que Deus não faz acepção de pessoas’”
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