domingo, 16 de fevereiro de 2014

Homilia de hoje [decisão, Lei e Profetas, honra e dignidade]


Homilia em viagem, ao som de “Mistério” de Teresa Salgueiro

[Quando faço as homilias em português, rezo-as, escrevo os tópicos, mas não o texto completo. Assim, dentro da flexibilidade deixo que também a comunidade me fale e assim lhes possa “responder” nesta missão diaconal de interpretação da Palavra de Deus. Este texto escrevi-o agora a partir dos tópicos e do que falei… digo isto porque faltam os “movimentos de anca” e “tons de voz”… ehehehe.]

Nós, seres humanos, vivemos em decisão. “Levanto-me ou não me levanto?” “Mais 5 minutos na cama?” “O que é que vou vestir?” “Tenho tempo. Vou a pé, de carro ou de metro?” “Super Bock ou Sagres?” “O que vou escolher para comer?” Estes são exemplos das decisões do quotidiano, que às tantas são tão naturais que nem se dá conta. Depois, há as decisões de fundo, que podem implicar com a própria vida, como é o caso, por exemplo, de perceber qual a vocação.

O livro de Ben-Sirá convida-nos a aprender a decidir, a aprender a viver a sabedoria da boa decisão. Não se trata de escolher entre um bem e um mal, que isso parece demasiado óbvio para ser causa de ponderação. A questão de fundo: muitas vezes ter de decidir entre dois bens. Pensando no fogo e na água como nos fala o texto, há que perceber o que é mais importante no momento. Para tal, temos de averiguar o contexto, o tempo que temos e o espaço em que se está. As decisões de fundo são difíceis de tomar. Mas, que tempo é que se tem? Opera-se alguém que se pode salvar, mesmo sabendo que pode correr o risco de morrer na operação? Não é fácil. E muitas vezes não se pode ir no efeito “carneirada” em que “ah, toda a gente vai, eu vou também…” Calma! Será que se for por aí isso vai-me ajudar a ser mais eu próprio e mais para os outros? Em geral, as decisões de fundo estão relacionadas com o caminho que se pode seguir para se ser mais “eu próprio” e “melhor servir os outros”. Não, não tem que ver com ser super-herói, mas sim, com o seguimento daquilo a que sou chamado ao encontro da Vida. 

Daí a importância da oração, de poder escolher em e com Deus. Sempre que possível, somos convidados por Deus a levar as grandes decisões à oração. A isso também se chama fazer discernimento. Quando estava a decidir, melhor, a discernir para entrar na Vida Religiosa, se era para ser Padre ou não, passei por momentos bastante duros. Nuns a emoção dizia-me: “estás louco, nem penses”; noutros “ah, é mesmo por aqui”. Claro que não vivi isto sozinho. Outro ponto importante é saber pedir ajuda. Quase sempre, a ajuda de alguém é fundamental. Não, não é para que a pessoa decida por mim, mas, estando de fora, com a sua experiência pode ajudar-me a ver dados que eu não consigo ver. Também não significa dizer aos “setes ventos” que estou neste processo, pois muita informação também não ajuda. Depois de ter decidido ser padre houve pessoas que me deram 3 meses… já passaram 10 anos. Com as decisões de fundo não se brinca. Apercebo-me que por terem, por exemplo, medo a enfrentá-las, muitas pessoas perdem grandes oportunidades de serem felizes.  

Parece-me que de algum modo é isto que nos fala Jesus no Evangelho. Não revogar a Lei nem os Profetas, mas completá-los também é dizer: “aprende a seguir e a decidir pelos mandamentos, tendo como fundo a misericórdia e o amor”. Neste grande Sermão da Montanha, Jesus fala para muitos de pensamento judeus. A Lei e os Profetas eram peça fundamental na fé do Povo de Israel. Recordemos que, por exemplo, os livros do Deuteronómio (não, não é “Doutor Anónimo” como alguém uma vez leu na Missa. É Deu-te-ro-nó-mio ;) ) e do Levítico apresentam a Lei através das múltiplas leis ao jeito de regras, para se viver bem a relação com Deus. Essa Lei, essa tradição fazia todo o sentido e Jesus não queria aboli-la, nem podia, pois é a História com que o povo foi sendo guiado. Mas vem completar com a visão amorosa e misericordiosa de Deus. Ou seja, a Lei vivida sem amor, sem misericórdia, é apenas cumprir regras por cumprir. Basta pensar que o próprio Jesus, por amor, transgrediu algumas regras, por exemplo, quando cura num sábado. 

Encontramos isto nos vários exemplos que Jesus vai apresentando: está escrito não matar. Pois bem, odiar alguém já é terrível. Atenção, não esquecer que os sentimentos não se controlam, a questão reside no que se faz com eles. Surge o ódio no coração: se o alimento já estou destruir-me a mim e, de alguma forma, a outra pessoa. Ora, cá está: como cristão, que ando aqui a fazer? Vou deixar estes sentimentos me controlarem? É duro dar a outra face, mas se, em nome de um bem maior faz mais sentido, não vou deixar nem o ódio, nem a morte prevalecerem sobre a grandeza que é o Amor de Jesus. E depois, vamos ser práticos. Jesus, na sua imensa sabedoria, não se ficava pelo espiritual: “estou chateado com algumas pessoas, mas vou rezar muito para ser uma pessoa muito boa!” "Sim, reza! Sem dúvida! Mas, olha lá: a oração não te adianta de muito se não pões em prática o amor e esse teu desejo de ser boa pessoa. Deixa lá a oração e vai ter uma boa conversa com quem tem alguma coisa contra ti.” Lembram-se do dar a outra face? Pois é aqui que entra: às vezes nem temos culpa, mas em nome da Amizade, damos o primeiro passo do perdão. "Depois, continua a rezar para continuares a ser alguém que anima, que dá vida, que põe o bem diante do orgulho pessoal." Ui, isto de ser Cristão… ;) 

Agora vem a mão e olho arrancados. Permitam-me que faça um pequeno parêntesis. Aqui está um bom exemplo em como nem sempre se pode ler a Bíblia de forma literal. Ao chegar a esta passagem, se a lesse dessa forma, eu, Paulo, já estava cego há muito tempo e estou desconfiado que nem andava, nem tinha mãos, nem braços. Já estava tudo cortado. ;) A bíblia tem diversos géneros literários e é por isso que é importante aprender a lidar com a riqueza destes textos. Jesus não nos está a mandar literalmente arrancar olhos, nem cortar mãos. Jesus convida-nos a arrancar a má visão das coisas, o que não nos faz ver bem. Jesus convida-nos a cortar as más acções. Obviamente se tenho uma má visão, isso vai-me afectar o corpo todo. Se faço uma má acção, todo o corpo vai, mais cedo ou mais tarde, sofrer. Caros amigos, se há visão e acção de arrogância, de superioridade, de maldade, de inveja… toca a arrancar isso tudo. Ver o mundo com os olhos de Deus é vê-lo com potencialidade de Vida e assim a minha acção, na linha das “mãos de Deus”, vai ajudar que esse mundo (família, trabalho, comunidade), possa ser melhor.

Isto leva-me para o último ponto: o sim que é sim e o não que é não. Esta passagem termina com Jesus a dizer: “queridos amigos, vivam a honra e a dignidade de Filhos de Deus que são. Não adianta andar com juramentos. Que a vossa palavra seja de honra e não conforme a tentativa de agradar para quando dá jeito.” A realidade não dá para ser mudada. Os factos estão lá. Toca a assumir o compromisso feito. Que custa, ninguém diz o contrário! Não nos deixemos levar, como dizia há pouco, pelo “efeito carneirada” quando se percebe que está tudo a ir a caminho do precipício. No entanto, se houver engano, não nos esqueçamos: arrepender também é caminho e o perdão de Deus está sempre pronto a ser dado.

Em resumo: Em mais um passo na nossa peregrinação da vida, somos convidados a aprender a saber decidir e viver a Lei acompanhados de Jesus que a completa com amor e misericórdia, sendo gente honrada, que faz os possíveis para caminhar em sinceridade no encontro consigo e na entrega ao outro. Amén. 



2 comentários:

  1. Muito Bom e o melhor é imaginar um lugar precioso para esta homilia a "puxar" por gente honrada com "movimentos de anca” . Fantástico!

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