quinta-feira, 11 de maio de 2006

Procuro a ternura súbita, os olhos ou o sol por nascer do tamanho do mundo, o sangue que nenhuma espada viu, o ar onde a respiração é doce, um pássaro no bosque com a forma de um grito de alegria.
Oh, a carícia da terra, a juventude suspensa, a fugidia voz da água entre o azul do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música. Chamo por ti, e o teu nome ilumina as coisas mais simples: o pão e a água, a cama e a mesa, os pequenos e dóceis animais, onde também quero que chegue o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa quando te procuro de rosto cravado na luz. Eu sei que há diferenças, mas não quando se ama, não quando apertamos contra o peito uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste: dedos para amortalhar crianças, dentes para roer a solidão, enquento o verão pinta de azul o céu e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te. Antes que a morte se aproxime, procuro-te. Nas ruas, nos barcos, na cama, com amor, com ódio, ao sol, à chuva, de noite, de dia, triste, alegre - procuro-te.
Eugénio de Andrade

1 comentário:

  1. Anónimo18:36

    Impossível

    Impossível cantar-te
    como cantei o amor adolescente
    colorindo de ingenuidade
    paisagens e figuras reduzindo-o
    à mesma atmosfera rarefeita
    do sonho sem percurso no real

    Impossível tomar o íngreme caminho
    da aventura mental
    ou imaginar-te pelo fio estéril
    da solitária imaginação

    Tão-pouco desenhar-te como estrela
    neste céu infame
    dizer-te em linguagem de jornal
    ou levar-te à emoção dos outros
    pela voz contrafeita da poesia

    Impossível

    Impossível não tentar dizer-te
    com as poucas palavras que nos ficam
    da usura dos dias
    do grotesco discurso que escutamos
    proferimos
    transidos de sonho no ramal do tempo
    onde estamos como ervas
    pedrinhas
    coisas perfeitamente inúteis
    pequenas conversas de ferrugem de musgo
    queixas
    questiúnculas
    arrotos comoventes

    *
    Mas de repente voltas
    numa dor de esperança sem razão de ser

    Da sua indiferença
    agressivamente as coisas saem

    Sentimo-nos cercados
    ameaçados pelas coisas
    e agora lamentamos o tempo perdido
    a dispô-Ias a nosso favor

    Porque é tempo de romper com tudo isto
    é tempo de unir no mesmo gesto
    o real e o sonho
    é tempo de libertar as imagens as palavras
    das minas do sonho a que descemos
    mineiros sonâmbulos da imaginação

    É tempo de acordar nas trevas do real
    na desolada promessa
    do dia verdadeiro.

    (É tempo de te esquecer...)

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